31 de dezembro de 2008

Últimas palavras

Em um último esforço, concentrando-se, fixou o olhar em cada um dos pares de olhos piedosos que o cercavam e que, um a um, se desviaram. Antes de tornar-se incomunicável, balbuciou:

- Eu não preciso das drogas. Elas é que precisam de mim... para expor ao mundo seus efeitos.

30 de dezembro de 2008

Enquadramento

Neste mundo de pessoas de visão
Bem informadas e moldadas

Amplia-se os horizontes
De polegada em polegada

29 de dezembro de 2008

Madalênico II

E tem gente que diz
Que tem pena das putas

Eu tenho pena é dos pobres putos
Que precisam de psicólogas
Esposas ou companheiras
E só as encontram nas ruas

A preço de ouro e prata
Ou, quem sabe
Dependendo do movimento
Um papo cortês e um anel de lata

28 de dezembro de 2008

Madalênico

Nos encontrávamos no mínimo duas vezes por semana

Ele, cidadão exemplar, ao final de cada encontro, dizendo-se encantado, me entregava uma lembrança que ele dizia não representar um décimo do que sentia por mim

Eu, como de praxe, aceitava o agrado, de bom grado, e partia para outro quarto, outro velho - ou garoto - babão e solitário

27 de dezembro de 2008

Louva-deus

Na aula de biologia, a professora explicou sobre o acasalamento muito peculiar de um inseto. Detalhou o processo no qual a fêmea devora a cabeça do macho ainda antes de copular e depois devora, aos poucos, o resto do corpo.

No final de semana seguinte, durante as horas que tinham para ficar juntos, em meio às frequentes reclamações do pai, ele perguntou:

- Papai, você acredita muito em Deus?

25 de dezembro de 2008

Decadente

Naquela noite, uma estrela cortou o céu a caminho da precária maternidade.

Horas depois, em entrevista aos jornais, o comandante garantiu que tratava-se de um esconderijo dos rebeldes.

19 de dezembro de 2008

Ao pé das letras

E aquele poeta, coração mole, apaixonava-se a cada instante, a cada página virada

Mesmo sabendo que se tratavam de amores platônicos, fazia de tudo para servir as suas musas. Submisso, vivia sempre aos seus rodapés

18 de dezembro de 2008

Flores sem cores

As borboletas costumavam disfarçar-se de flores para escapar dos pássaros

Na falta de flores, cercadas por asfalto e concreto, até as borboletas ficaram cinza

17 de dezembro de 2008

Somando

Neste mundo de tantas raças
Tantas classes
E tantas crenças

É preciso lutar pela igualdade
Para fazer a diferença

16 de dezembro de 2008

15 de dezembro de 2008

Revoada

Sempre nesta mesma época, no final de ano, com o fechamento das filiais, o dinheiro, que vem para cá se reproduzir, migra de volta para o norte carregando seus filhotes

E nunca mais volta

14 de dezembro de 2008

13 de dezembro de 2008

Medo

O garoto, inocente, adorava dar asas à imaginação.

O irmão mais velho, definitivamente culpado, acrescentava os olhos vermelhos, dentes afiados e garras.

12 de dezembro de 2008

Alice no País de Marlboro

Seguindo o Elefante Branco da publicidade, sempre apressado, por ter apenas 30 segundos para aparecer e sumir, Alice foi parar no País de Marlboro.

Chegando lá, Alice descobriu que o Chapeleirto Maluco e a Lebre de Março estavam tentando, sem sucesso, substituir o cigarro pelo café. Ansiosos, tomavam litros e mais litros, mal dormiam e, ainda assim, precisavam fumar.

Entre uma visita e outra, Alice acompanhou o drama da Lagarta, que trocou o cigarro pelo narguile, um vício por outro, e quase não dava conta de trocar as brasas e essências.

Com o tempo, Alice descobriu que a Rainha de Copas ficava estressada e descabelada, ordenava execuções a torto e a direito, enquanto não parasse para fumar um cigarrinho.

Quando Alice finalmente resolveu sair daquele lugar, descobriu que a porta havia encolhido e que ela, assim como os outros, não conseguiria escapar.

9 de dezembro de 2008

Inseguro

Quando se cruzavam, ele sempre saia correndo. Talvez por medo de, sem querer, revelar algum segredo.

Medroso, mesmo que não soubesse para onde ir, meu olhar sempre evitava o teu.

7 de dezembro de 2008

1 de dezembro de 2008

Cítrica literária

Literatura ácida
Sem esperança

Textos secos e sem respostas
Ou, ao menos, algumas perguntas

Explorando tragédias,
Indiferente

Escrevendo
Má e porca mente

28 de novembro de 2008

Ilusionista

A bruxa do norte insistia, há muitos anos dizia que as bruxas do leste, do oriente, é que eram más

Mas era ela própria quem poluia aquele mundo e destruia, pouco a pouco, a camada de Oz

22 de novembro de 2008

19 de novembro de 2008

Desvios

Com tantas placas e setas, tantos mapas e anexos

Com tanta gente apontando para um lado e outras gentes puxando para outro

A verba nunca acertava o caminho

16 de novembro de 2008

Superstição

Era um povo muito supersticioso. Em meio a outras crenças, acreditavam que cruzar os dedos trazia sorte.

Acreditavam tanto, mas tanto, que cruzaram não só os dedos, mas também os braços, e ficaram esperando.

13 de novembro de 2008

Vira-latas

Sem pompons, regras ou frescuras. Sem roupinha para o frio ou coleira para o medo de não se encontrar. Sem tigela de ração, mas, de vez em quando, um potinho de qualy com feijão

Prefiro assim, gosto mesmo é de poesia vira-latas

10 de novembro de 2008

De lua

- Ela é meio de lua.

- Ah é? Meio instável?

- Não, não. Se faz bela com o brilho dos outros.

9 de novembro de 2008

Cortesia

Sou um sujeito avaro

Por minhas paixões, geralmente cobro caro

Mas de você, sinceramente, gostei de graça

7 de novembro de 2008

Venda casada

Quando cansava das reclamações da esposa, pagava pelo silêncio

Quando estava preocupado com o silêncio, pagava pela conversa

Para ele, o sexo era um brinde

3 de novembro de 2008

Faminto

Comeu meu nome, meu telefone e minha identidade

Depois, comeu meu CPF, minha carteira de trabalho e duas fotos três por quatro

Em seguida, comeu minha barba, meu cabelo e meu tempo

Por fim, como sobremesa, o trabalho comeu meu amor







ps: Os três mal-amados, de João Cabral de Melo Neto

30 de outubro de 2008

Desfocado

Na visão de quem quer girar o mundo com os pés
de quem vive na correria
dia após dia

e nem vê passarem as horas


minutos




segundos




até flor vira borrão

29 de outubro de 2008

Seguro

O juiz emitiu uma ordem de restrição obrigando-o a ficar a uma distância mínima de 50 metros da ex-esposa.

Ele nem se importou, sempre teve uma ótima mira.

28 de outubro de 2008

Instinto

Todo animal acuado, preso, reage com violência. Às vezes, na impossibilidade de atacar seu agressor, age contra as outras vítimas que o cercam.

Os policiais, coagidos a coagir, seguem a mesma tendência.

27 de outubro de 2008

Roubo do século

Em suas ações, pequenos delitos, roubavam bolsas e carteiras, objetos de pouco valor. Um dia, resolveram pensar grande e decidiram organizar o maior assalto da história do país, saquear os mais preciosos valores.

O plano, muito bem composto, foi orquestrado com perfeição. Tomaram o controle do prédio, colocaram todos os engravatados de cara para o chão e então perguntaram:

- Onde está todo o dinheiro?

Instantaneamente, todos começaram a rir, contraiam-se pelo chão tentando conter as gargalhadas. E os assaltantes, em um primeiro momento confusos, ficaram furiosos, sentiram-se humilhados pelas risadas sarcásticas e começaram a atirar.

Muitos acabaram morrendo antes da moça da limpeza, muito sensata e corajosa, ter se levantado para explicar:

- Seu moço, não tem dinheiro nenhum aqui não! Aqui só fica esse pessoal o dia todo correndo e gritando para um lado e para o outro, com uns 5 celulares pendurados no pescoço, brincando com dinheiro de mentirinha, dos outros e que só existe no computador.

26 de outubro de 2008

Antes que

Os mais antigos diziam que precisavam viajar, conhecer o mundo, antes que acabassem morrendo

Logo logo, se continuar assim, teremos que ir antes que o mundo acabe morrendo

25 de outubro de 2008

Defeito perfeito

- Odeio cigarro, da fumaça ao cheiro e, principalmente, o bafo!

- Mas você só se envolve com fumantes!

- É porque depois fica mais fácil de largar o vício.

24 de outubro de 2008

Ausência

Era um poeta de viver poesia

E escrevia contos

Mas, quando a coisa estava crônica, deixava de escrever

Preferia não ser a ser má influência

22 de outubro de 2008

Não

Queria eu ter uma chance
de não me despedir

Um momento
para não esquecer

Queria eu que esse não

não ecoasse

21 de outubro de 2008

Mudança

Sem palavras,
o criado mudo
isolou-se em um canto.

A geladeira,
sempre tão fria,
derreteu-se em lágrimas.

O chuveiro,
sempre tão quente,
agiu como se não ligasse.

As paredes ecoaram o silêncio da despedida.

Algumas portas se fecharam
e outras se abriram.

Enquanto eu,
que já não me sentia mais em casa,
parti.







2009 - Concurso Cassiano Nunes - Biblioteca da UNB - Brasília - DF;
Publicada na coletânea do concurso

20 de outubro de 2008

Dia da poesia

No dia 20 de outubro, dia nacional da poesia, ao acordar, ao invés de abrir os olhos, descerrei as cortinas das janelas de minha alma

18 de outubro de 2008

Quebra galho

Aquele grande tentáculo, de início assustador, oferecia-me, delicadamente, da ponta de um dedo curvado, uma bela flor.

Deitei-me ao chão e percebi que não se tratava mais de um tentáculo, mas de uma grande artéria, afluente de muitas veias, corrente por todo aquele corpo. Cheguei a procurar a nascente, a fonte, um coração diligente, mas as raízes do problema eram a solução.

Em um instante, um pulo, fiz dali meu mirante e, com pose de pirata, papagaio no ombro e barba na cara, observei a terra distante.

Já cansado, pendurei ali minha rede. Se é para ficar cada macaco no seu galho, eu me acomodo nesse.







2009 - 5º lugar no Concurso Maximiano Campos - Instituto Maximiano Campos - Olinda - PE;
Publicada na coletânea do concurso

16 de outubro de 2008

Vendedor

Mais precisamente

Preciso fazer você pensar
Que precisa
Do que eu preciso
Que você precise

15 de outubro de 2008

Cidades das pombas

Em pequenas cidades, no interior de qualquer lugar, as pombas pomposas, criadas a pipoca, empoleiram-se pelo centro, cobertas pelas marquises dos prédios históricos e pelas árvores dos passeios e praças

As primas pobres, pombas silvestres, batalham diariamente, debaixo de sol, por um pouco de milho e, em dias de sorte, alguns farelos

14 de outubro de 2008

13 de outubro de 2008

Leigo

Sou o sujeito mais ignorante de todos que conheço

Não sei nem metade da lista das coisas que eu, simplesmente, não sei

12 de outubro de 2008

Se não me falha

Um roteiro sem nexo
De um filme sem começo

Cheio de furos e pontos de virada
Com conclusões absurdas
E outras esperadas

A ficção que se encontra nos jornais
Baseada em fatos reais

A boa memória falha
A mente mente
O passado volta diferente

E essa história - ou estória
Eu não sei se volta
Ou se vai pra frente

11 de outubro de 2008

Incógnito

Era viciado em reuniões de anônimos

Ia a todas, dos narcóticos aos workaholics, passando por alcoólicos, comedores compulsivos e mulheres que amam demais

Tudo que ele queria era deixar de ser anônimo

10 de outubro de 2008

Terra seca e áspera

Um dia ela cansou de ser chamada de flor e tratada como espinho

Foi embora daquele lugar, cortou o mal pela raiz

9 de outubro de 2008

Ídolos

A lenda, o mito

No entanto
Por trás das cortinas do palco
Do lado de lá da tela
Havia um ser corroído
Inacabado e desiludido

Além do mito

8 de outubro de 2008

Piromaníaca

Acendia fogueiras, despretensiosa, apenas para vê-las arderem, estalarem e consumirem-se

Quando sentiu frio, desamparada, já não tinha mais ninguém para servir de lenha

7 de outubro de 2008

Notável

Naquela noite que se fez outro dia, a lua estava tão cheia, de si própria, que mesmo depois de o sol ter se aprumado, ostentoso, ela ainda desviava a atenção de muitos desavidados

6 de outubro de 2008

Obstáculo

Fazia planos e estabelecia metas, mas nunca ia até o fim

Quando parou para pensar, no meio do caminho, percebeu-se pedra

5 de outubro de 2008

Apnéia

Mergulhava em relações profundas, sonhos intensos

E quando terminava, sem fôlego, afogava-se em mágoas

4 de outubro de 2008

Controle

Começou me deixando sem palavras

Depois, colocava as palavras em minha boca, uma por uma

Quando percebi, pensei em tomar uma atitude, mas, a esse ponto, já era ela que marcava meus passos

Sem ação, pensei em desistir... E foi minha última idéia própria

3 de outubro de 2008

Partida

Para os jogadores, dribladores da miséria, a partida mais importante de toda a vida é para a Europa

2 de outubro de 2008

Decepção

Já havia perdido a esperança, mas, até a última hora do dia, esperou a festa surpresa

2 de setembro de 2008

Sobreviventes

Viveu para contar
Mas não foi o único
Muitos outros, apesar das dificuldades, continuavam escrevendo

1 de setembro de 2008

30 de agosto de 2008

Pontas

Não há mais palavras nas pontas das línguas

Agora elas ficam nas pontas dos dedos

E quando caem, embaralham-se nas letras do teclado

24 de agosto de 2008

Fora da lei

Desafiou todas as leis e quebrou uma por uma. Sempre conseguia se safar das consequências.

Só não escapou impune à lei da gravidade. Os policiais concluiram que ele se jogou. Olhares aflitos e mãos tremulantes concordaram.

23 de agosto de 2008

Vagalume no fim do túnel

Um vagalume voando em círculos, vagando de mão em mão.

Acende-se nas bocas e ilumina as faces, desfiguradas pela noite e pelo medo.

Vagalume traiçoeiro que se acaba no cinzeiro.

12 de agosto de 2008

Felizes para sempre

Por aquelas terras, todos aceitavam a idéia de que a ignorância trazia felicidade.

Não se sabe ao certo quem havia formado esta opinião, afinal, poucos eram formadores de opinião. A grande maioria não formava nem a própria.

11 de agosto de 2008

10 de agosto de 2008

Protetor

Ele dá gritos agudos ao meu ouvido

Logo depois, me empurra com toda força

Em seguida, atira grãos de areia em meus olhos

Tudo para que eu volte para casa

O vento fica muito nervoso quando, por mais que ele avise, as pessoas insistem em enfrentar as tempestades

9 de agosto de 2008

Instáveis

Há um casal problemático que passeia entre minhas idéias

Não conseguem viver juntos por muito tempo

Se o álcool entra
A poesia logo sai

8 de agosto de 2008

7 de agosto de 2008

Abrindo portas

O primeiro mundo vai lhe abrir muitas portas

Entregar muitas chaves

E lhe dar uma boa gorjeta, contanto que sorria

6 de agosto de 2008

Lobisomem moderno

A avó contava uma estória do folclore nacional para os seus netinhos:

- Então, quando uma família já tem três filhas mulheres e depois nasce um homem, esse rapaz estará condenada a virar um lobisomem na primeira lua cheia após seu aniversário de 18 anos.

Um dos filhos, um tanto mais velho, interrompeu exclamando:

- Ei! Isso está errado. Não eram sete meninas e daí um menino?

A avó respondeu, do alto de sua experiência:

- Isso em 1950, meu filho. Hoje em dia, a gente precisa adaptar. Dizem que lá na China já estão em uma menina só!

5 de agosto de 2008

4 de agosto de 2008

Ressaca na praia

É chuva que cai sem se ver
Sol que queima e não se sente
Um rodopiamento inconsciente

É dor que desatina após beber

3 de agosto de 2008

2 de agosto de 2008

Tombos

Apaixonar-se é como andar de bicicleta

Você nunca esquece como se faz

Mas, ainda assim, acaba levando alguns tombos

1 de agosto de 2008

30 de julho de 2008

Retalhismo

Um corte daqui
Outro dali

Cenas apenas
Nada a mais
Nem a menos

Lampejos e surtos
Prosa e poesia
Tiros curtos

29 de julho de 2008

Comer fora

- É assim todo dia, meu marido chega em casa com uma vontade. Não aguento mais.

- Melhor chegar com apetite do que chegar saciado.

27 de julho de 2008

26 de julho de 2008

Ameaça

Era um adepto da não-violência. Mas, percebendo a ineficácia do pacífico aviso de que aquilo era uma garagem e as pessoas não deviam estacionar bem em frente, produziu uma nova placa com os dizeres: "Não estacione. Sujeito a pneu furado".

Nunca mais teve problemas.

24 de julho de 2008

Nascente

Nado contra a corrente

Todo rio de sujeira

Começa em um mar de gente







2008 - 18º Concurso de Poesias Helena Kolody - Secretaria de Estado da Cultura - Curitiba - PR;
2008 - 7º lugar no Concurso Internacional de Poetrix - Movimento Poetrix - Salvador - BA;
Publicada nas coletâneas de ambos os concursos

23 de julho de 2008

Apressado

Quando a mãe perguntou o que queria ser quando crescesse, ele não hesitou:

- Quero ser velho!

- Ué, você não queria ser advogado como seu pai?

- Isso antes de passar as férias na casa do vô. Agora, quando crescer, eu quero ser velho.

- Como assim, meu filho? Velho você vai ficar de qualquer jeito.

- Eu sei, mas o que eu quero é poder aproveitar a vida e relaxar.

A mãe fez cara de bronca e perguntou:

- Você sabe que seu avô passou anos trabalhando para poder descansar agora, não sabe?

- Sei sim. E ele disse que na época ele não sabia aproveitar a vida e que agora, que ele é mais experiente, se arrepende profundamente.

A mãe parou, refletiu e deu-se por vencida. No fundo ela sabia que o garoto estava mais certo do que errado e o mundo mais errado do que certo.

22 de julho de 2008

Janela para a lucidez

O muro de um sanatório gritava em vermelho:

O pior louco é aquele que não quer perder o controle

21 de julho de 2008

Lua de Chesire

A lua, deitada no céu, sorri um sorriso minguado

Ela sabe que, por estas ruas enevoadas, durante a madrugada, encontrará apenas os bêbados e os loucos

20 de julho de 2008

Cego

Deixava o espaço dela na cama
Andava de mãos dadas com o vento

Demorou a acreditar que acabou

19 de julho de 2008

Metamorfose

- Papai, de onde vêm os poetas?

- Quando um escritor perde a musa, ele se fecha em um casulo por um tempo e, quando sai, já virou poeta.

18 de julho de 2008

17 de julho de 2008

Pouco exigente

O protagonista que aceita os moldes da história

Torna-se personagem incompleto

Figurante do próprio romance

16 de julho de 2008

Naturalmente, carnívoros

Como todo dia, na pia, o ritual pós-sacrifício acontecia: limpar as peles, cortar em filés, tiras ou cubos, temperar e cozinhar. Naquele dia em especial, em uma tábua de madeira, diante do altar, encontrava-se uma galinha caipira, com o pescoço torcido e ainda mantendo algumas penas.

O garoto, curioso, aproximou-se da cozinha e observou, com um pouco de nojo, a mãe manuseando aquele bicho. Ela arrancando penas, cortando a cabeça e tirando as peles. Quando reparou que ele estava ali, ele olhou para ela e perguntou:

- Mãe, o que é isso?

- Franguinho, filho!

- Então... É isso que é franguinho?

15 de julho de 2008

Deportado

Ao ser mal tratado pelos agentes da imigração, percebeu, tardiamente

Le Monde
n'est pas
Diplomatique

14 de julho de 2008

13 de julho de 2008

Causas

Em um muro de Curitiba, lia-se o seguinte protesto:

Carne é crime

Alguns dias depois, a resposta apareceu ao lado:

Fome é foda

10 de julho de 2008

Liberdade

Perguntam-me onde é que vou parar

De amarras soltas, deixo o vento que responda por mim

9 de julho de 2008

Cômodo

Estável em minha infelicidade, mudei-me para uma casa de apenas um cômodo

Era mais do que o suficiente para um acomodado

8 de julho de 2008

7 de julho de 2008

Parceiro

Depois de quinze minutos naquela mesa de bar, sem uma palavra sequer, ele contou:

- Ela me pediu um tempo.

- E o que você fez?

- Eu dei. Dei dois minutos...

Me olhou nos olhos, ameaçou sorrir, soltou o ar pelo nariz e continuou:

- Para ela juntar as coisas dela e sumir.

Virou o copo e pediu outra dose. Eu, como bom amigo, o acompanhei, da ira ao choro.

6 de julho de 2008

Tempos pós-modernos

- Com o que você trabalha mesmo?

- Preocupo-me com detalhes que não fazem diferença.

- Que interessante, eu também.

5 de julho de 2008

Visionários

Os donos do mundo sabem que o petróleo derivou-se de animais e vegetação soterrados

Pensando no futuro, matam, desmatam e encobrem

4 de julho de 2008

Labirinto

Costumava dizer que estava apenas experimentando, abrindo portas

Algum tempo depois, entre tantas portas, já não sabia mais por qual sair

3 de julho de 2008

Insanidade

Depois de um dia cansativo, dando suor e sangue no trabalho, ele sentou-se à sua poltrona, no meio da sala. Seu filho surgiu correndo pelo corredor, saltou sobre ele e lhe deu um abraço apertado. Ele, já sem forças, retribuiu com um beijo no rosto e disse para o filho que se sentasse ao chão para que pudesse prestar atenção no jornal.

Após uma notícia, o garoto ficou curioso e perguntou:

- Mas, pai, como é que as vacas ficaram loucas?

- Elas foram alimentadas com ração que continha carne de vaca e um monte de produtos químicos, daí elas ficaram doentes e enlouqueceram.

- Então as vacas que se alimentaram de vacas são chamadas de vacas loucas?

- Sim. Isso mesmo.

- E como é que são chamadas as pessoas que se alimentam de pessoas?

Após pensar um pouco no seu dia e no estado em que estava, ele respondeu:

- Ricos, meu filho. Nós chamamos de ricos.

30 de junho de 2008

Salsa

Dá de ombros como quem não quer nada

Mas, no momento seguinte, aproximamos os corpos, entrelaçamos as pernas e esbarramos os olhares

28 de junho de 2008

Sem ressaca

Na manhã seguinte, os olhos estavam com o tom amarelado da falta de sono

E com o brilho de que valeu a pena

27 de junho de 2008

26 de junho de 2008

Insuspeito

Dentro do ônibus, foi arremessado ao chão após uma freada brusca. Algumas pessoas, solidárias, ajudaram-no a se levantar. Ele mal agradeceu e procurou um lugar onde pudesse segurar-se e permanecer em pé. Assim que se estabilizou, colocou as mãos no bolso e percebeu a ausência da carteira. Imediatamente, soltou o ar, bufando, extremamente nervoso, e, sem saber exatamente como agir, começou a observar e a pensar. Reconstituiu o momento da queda, cada detalhe e cada movimento. Repassou e fixou os olhos em cada rosto, como numa linha de reconhecimento de suspeitos. Falava para si mesmo:

- Foi aquele do cabelinho espetado e calça larga. Tem perfil de bandidinho, só pode ter sido. Ou então aquela crente, se fazendo de santa, mas sem um pingo de honestidade, deprimente. Pode ter sido o cobrador. Cobrador é sempre malandro, dando cantadas nas mães solteiras, enganando os turistas, não se salva um. Pode ter sido qualquer um, não boto minha mão no fogo por nenhum destes... destes... humanos.

Continuou sem ação e indignado até chegar a seu destino. Sentiu-se mal, mais pelas atitudes alheias do que pelo pouco dinheiro que carregava na carteira. Desceu do ônibus e prosseguiu apenas esmiuçando cada suspeito e contando a si mesmo a ficha criminal e os maus hábitos de cada um.

Após chegar em casa, encontrou a carteira escondida, devido ao medo de assalto, em um bolso interno da mochila. No ônibus, ninguém suspeitava do que se passava na cabeça daquele pobre sujeito que eles ajudaram a se levantar.

25 de junho de 2008

Indecisão

Peguei o ônibus errado. Quando percebi, ao invés de sair, sentei. Até que era confortável.

Só me voltava a agonia quando eu olhava, através do vidro, e via: tudo que eu queria ficando para trás. Quanto mais tempo eu ficava ali, mais longe ficava meu destino. Escorri pelo vidro como a chuva. Mas, fiquei inerte, na cadeira para dois com uma vazia, não sei se por orgulho ou teimosia.

Uma hora, o motorista parou, levantou e disse:

- É o ponto final.

- Tenho mesmo que descer?

- Pode ficar aqui, mas vai ficar só.

Naquele dia, dormi na garagem. Senti um pouco de frio, mas, de resto, era bem cômodo.

24 de junho de 2008

22 de junho de 2008

Punição exemplar

Chamamos, ironicamente, de país da impunidade

Um lugar onde a maioria é punida, diariamente, pela falta de oportunidade

19 de junho de 2008

Domador de demônios

Deito em minha cama e milhares de pequenos demônios infestam-me as idéias, o travesseiro e o canto escuro do quarto.

Ando cautelosamente até o som, ligo-o e volto para a cama; Com a música, ao menos, eles dançam.

18 de junho de 2008

Cumplicidade

Depois de separados pelas circunstâncias, ao se encontrarem, trocavam um abraço e tocavam os rostos, para saber que estavam bem.

Ao menos isso ainda podiam. No mínimo, deviam.

16 de junho de 2008

14 de junho de 2008

Descuidado

Delicadas, em minhas mãos, não duram

Quebro todas, quase que sem querer

Antigamente, as coisas eram feitas para durar, sólidas

Hoje em dia, até as regras são frágeis

12 de junho de 2008

Ausente

Embrulhei o futuro para presente e te entreguei

Em troca, recebi apenas uma lembrança

11 de junho de 2008

Prós e contras

Não há lugar mais seguro do que uma cela
Não há paixão mais estável do que a contida

Não há lugar ao sol que não queime

10 de junho de 2008

9 de junho de 2008

Contra o tempo

Explicou ao filho as coisas da vida e do tempo. Para facilitar, usou o relógio de exemplo:

- Aquele é o tempo, passando.

- Ele fica dando voltas?

- Nem sempre, às vezes passa correndo e nunca mais volta, por isso precisamos correr atrás do tempo.

No dia seguinte, após ficar horas observando o relógio enquanto o pai corria de um lado para o outro, o garoto retrucou:

- Você disse que a gente tem que correr atrás do tempo porque o tempo corre. Mas, ele tem uma perna bem maior que a outra, nem consegue correr. A gente é que tem que andar com mais calma... Para não deixar ele para trás.

8 de junho de 2008

Disputado

A faca pega em minha mão e acaricia meus pulsos

O lençol envolve-se em meu pescoço

E a sacada faz cócegas em meus pés

Mas, por fim, são as pílulas que me beijam a boca

7 de junho de 2008

Virando o avesso

Viramos mais um copo de pinga antes de virar mais um assunto do avesso. Ela começou:

- Quando é bom demais, sempre acaba.

- Estranho isso, não é? Deve ser aquela coisa de parábola.

- Parábola de estória?

- Não. Bom... Sim, é sim. Estória em parábola, aquela curva que sobe e desce, tipo o arco-íris!

- Ahn?

- Arco-íris! Sai do chão, vai ao céu e volta... Mas sem pote de ouro no fim.

- Nem duendes?

- Nem ao menos uma fada.

- Triste.

Estabelecemos um minuto de silêncio. Depois de quinze segundos, continuei:

- É, mas pelo menos dá para tomar banho de chuva.

- Ahn?

- Arco-íris. Sol e chuva.

- Casamento de viúva.

- Chuva e sol, casamento de espanhol.

- Achei que ninguém lembrasse disso.

- Lembro até do pé de cachimbo.

- É. O buraco é fundo.

- Não acabou-se o mundo.

- Não mesmo. Bola para a frente.

- Que atrás vem gente.

- Essa tinha continuação?

- Acho que não.

- Vamos inventar?

- Como?

- Sei lá. Bola para frente que atrás vem gente. Gente é carente, confunde a mente. Mente é fraca...

Após uma breve pausa, continuei:

- Só consigo lembrar de cloaca.

Ela deu uma risada sonora e exclamou:

- Cloaca! Não ouvia isso desde os tempos do colégio.

- Cloaca não rola. Faca, vaca, maca, babaca.

- Mente é fraca... enche de craca.

- Nossa! Essa eu não ouvia desde quando eu estava aprendendo a tomar banho sozinho. Minha mãe vinha conferir se eu tinha lavado tudo direitinho e perguntava, parte por parte, "Lavou o joelhinho?", eu respondia "Ih! Esqueci!". Depois ela falava que eu estava cheio de craca, craquento.

Rimos, paramos e ficamos pensando. Ela voltou ao assunto:

- Mente é fraca... Por que fraca? Não dá para mudar o fraca?

- Dá. Gente é carente, confunde a mente. Mente é paranóica...

Novamente rindo, com um brilho nos olhos, ela respondeu:

- Aí fode com a rima.

- Rima com perestroika!

Ela gargalhou e eu, num estalo, continuei:

- Mente e se engana.

- Olha. Adoro quando você faz isso!

- Isso o quê?

- Brincar com as palavras.

Quase encostando o queixo no peito, suspirei. Ela perguntou:

- Ficou envergonhado?

- É.

- Seu besta. É um elogio.

- Eu sei. Mas...

Não terminei a frase. Não consegui nem formular. Respirei fundo e continuei:

- Vamos terminar. Com engana.

- Tomando cana!

- Cana é braba, tudo acaba!

- Perfeita, seu boêmio!

Eu sorri, ela continuou:

- Gostei do final, mas já esqueci o começo. Como é que ficou?

- Bola para frente
Que atrás vem gente
Gente é carente
Confunde a mente
Mente e se engana
Tomando cana
Cana é braba
Tudo se acaba!

- Fechou fudido!

Extasiados, pedimos mais uma dose.

5 de junho de 2008

Desejo negado

O isqueiro acende a chama
Ilumina o olhar

Mas fica na vontade

Nem ao menos chega perto
Do calor da boca

4 de junho de 2008

Solução

Entediado, reparava nos detalhes verde-mofo da rotina, cartas marcadas

Inspirado, embaralhou-as com algumas lembranças avermelhadas

Debaixo do céu azul e com folhas no chão, amareladas, fez do outono primavera

3 de junho de 2008

Peso

- É sempre assim, só damos valor quando perdemos.

- Não generalize! Eu, por exemplo, dou valor quando tenho.

- E quando perde?

- Sinto muita falta.

2 de junho de 2008

Dar um tempo

- Não acha que a gente deve dar um tempo?

- Eu não.

- Mas por que?

- Sou egoísta com o tempo. Quero o meu inteiro, por completo e muito bem aproveitado!

1 de junho de 2008

Livro sem capa

Hoje sinto-me assim

Um livro sem capa
Páginas desgastadas
Amareladas, amassadas

Jogadas no lixo

31 de maio de 2008

30 de maio de 2008

Ponto cego

Por anos, esteve diante da mais delicada das borboletas

Infelizmente, de onde estava, via apenas o casulo

29 de maio de 2008

Sorriso só

Tomou uma injeção de ânimo. O coração disparou e os olhos brilharam. Tremeu de tanta alegria.

A diarista encontrou o corpo três dias depois.

- Ele sorria... - Disse ela, angustiada.

28 de maio de 2008

Twist

Foge de mim como quem dança

Quando mal tocamos as pontas dos dedos, enrola-se de volta em meus braços e sorri

27 de maio de 2008

Alheio

Mal sabia que seu trabalho fazia dignos apenas aqueles que colhiam os frutos de seu esforço

Sádico e bem treinado, agradecia a oportunidade

26 de maio de 2008

Espaço

- Eu preencho meus dias com ela.

- E quando ela vai embora você fica com um buraco, vazio.

- Não é que eu fique vazio, eu guardo espaço para quando ela voltar.

20 de maio de 2008

Carpe

As medidas do tempo
São todas convenções
Autoritárias decisões

Mas é com a intensidade
Sem nenhuma autoridade

Que se mede
Na medida do possível

As imensuráveis paixões

18 de maio de 2008

Revertendo

Quando o caso é sério
E a coisa esquenta
Ninguém se aguenta
Todos saem do sério

Quando o caso esquenta
E tem raiz profunda
Muito injustamente
Diz-se à flor da pele

Com tudo invertido
Neste mundo estranho
Entro em um espelho
E vou me aconchegando

16 de maio de 2008

Pluma

Se fico com pé atrás
É só pra me dar impulso


E o passo
Maior que a perna
Costumo chamar de salto



Prefiro voar




E cair

A nunca ter me sentido
Mais leve que o próprio ar

15 de maio de 2008

Sutil

Cantarolando, colheu do chão uma flor cheia de pétalas. Delicadamente, retirando pétala por pétala, começou a falar, entre sorrisos e suspiros:

- Bem me quer... Bem me quer! Bem me quer... Bem me quer!

Um amigo um tanto sem sal, e totalmente sem açúcar, interrompeu:

- Não! Não é assim!

Ao que ele respondeu:

- Você só diz isso porque você não conhece ela!

E continuou sorrindo.

14 de maio de 2008

O mal do bom

O único sofrimento que tratava como alheio era o seu próprio

Talvez nunca fosse feliz de verdade por causa disso

Mas, pensando por outro lado, nunca seria triste

13 de maio de 2008

Ingrato

Vestiu o terno da indiferença, os óculos escuros do desprezo e subiu o vidro da intolerância.

Após realizar o ritual diário, rumou pelo meio daquela gente, que ele sempre desdenhou, para onde aquela mesma gente, que pagava seu salário, o colocou.

11 de maio de 2008

Experiência

Ao pararem em um semáforo, ao lado de uma carroça puxada por um burro, o garoto ficou observando o animal, questionou-se por alguns momentos e decidiu perguntar:

- Vovô, qual o nome desse negócio que tapa a visão dos burros?

Sem nem ter visto o burro, o avô respondeu, com precisão:

- Preconceito, meu querido. Preconceito.

8 de maio de 2008

Despedida

- Hoje tem a despedida do Paulo.

- Ah é? Ele vai para onde?

- Já foi.

- Sério? Ele nem me disse tchau.

- Não disse para ninguém. Ele foi assim, de repente.

Abraçaram-se e choraram.

7 de maio de 2008

6 de maio de 2008

5 de maio de 2008

Planos e Mecas

Decididos a viajar e indecisos quanto ao lugar, mas muito objetivos, estabeleceram que cada cidade do mundo seria uma Meca, meta. Passaram a visitá-las, aos poucos, uma a uma.

Faziam planos e viviam sonhos.

4 de maio de 2008

Apreensão

Entrou chutando a porta, seguido pelos comparsas, e disse:

- Pelo pó viemos. E com o pó retornaremos.

2 de maio de 2008

Silêncio

Dizem as más línguas

As boas calam, se abraçam







2010 - 19º Prêmio Rocha Moutounée - Secretaria de Cultura - Salto - SP;
Será publicada na coletânea do concurso

30 de abril de 2008

Arte sem vida

A poesia é arte vivida.

Defini-la como coisa escrita é como limitar a música à letra ou à cifra. É separar o corpo da alma, um assassinato, separar a arte da vida.

29 de abril de 2008

Angustiado

Eu estava conversando com ela naquele quarto vazio. Uma porta, um sofá e nós dois. Uma lâmpada no centro, fraca, escorrendo pelas paredes amareladas até o piso de madeira.

O assunto da conversa: qualquer um, nenhum, não lembro. Só lembro que a luz foi ficando fraca, começou a falhar e a escorrer de volta para a lâmpada, e a sala foi ficando escura. Ela então disse:

- O clima está ruim aqui. Uma energia ruim.

Naquele cenário macabro, apenas a luz da rua, ou da lua, atravessando a janela, iluminava a parede amarela às costas dela. Ela já não estava mais iluminada. Sombras finas e tortuosas, de alguns galhos lá de fora, formavam-se às suas costas enquanto uma sombra maior lhe cobria o rosto. Eu não conseguia mais notar nenhum detalhe. Rosto, boca, nariz e olhos, todos fundidos em uma sombra, inerte, imóvel, muda.

Tentei tocá-la, mas tive medo, já não a reconhecia mais naquela silhueta. Tentei falar algo, não consegui. Levantei angustiado. Peguei o telefone e pensei em ligar para ela, desisti quando vi a hora. Não consegui dormir de novo.

28 de abril de 2008

Aliviado

Puxou o ar, para espairar, e soltou aliviado. Sentiu como se há muito tempo não tivesse respirado, inspirado.

Dissipou a neblina que lhe cobriu o mundo e deu um passo atrás. Dali, aliviado, olhou para a própria vida e esboçou um sorriso no canto da boca.

27 de abril de 2008

Floreado

Viviam, se é que dava para chamar aquilo de viver, em um mundo de violência, de insanidade e sem clemência. Neste mundo invertido, tapa virou carinho e, das flores, aproveitava-se apenas os espinhos.

As pessoas nunca sorriam e nunca choravam. Não se sabe ao certo se sentiam algo, mas ninguém importava-se com isso, sentimentos alheios eram realmente alheios. Viviam de muitos tapas e poucos beijos, muito empurrão e pouco abraço, muitos gritos e poucos suspiros. Carinho de verdade, só por conveniência, nos breves lapsos de inocência.

Mas havia um sujeito que vivia com um sorriso permanente. Ele parecia estar alheio, avoado. Esqueceu de acompanhar o fluxo. Os olhares curiosos o acompanhavam e perguntavam-se sobre a existência de um motivo para sorrir. Naquele mundo, o sorriso e muitos pequenos prazeres eram considerados mitos, lendas urbanas . As pessoas comentavam nas rodas de amigos: "um amigo do vizinho do meu primo disse que rolou no chão de tanto rir", "eu tenho uma tia que disse que trocou olhares e sorrisos com um sujeito, olhares nos olhos!". Os ouvintes das mesas de bar ficavam sempre entre curiosos e incrédulos, esperançosos e céticos. Entretanto, quem via o sorriso daquele sujeito sentia-se um pouco inquieto e via-se, pela primeira vez, pensando no sentimento alheio.

Um dia resolveram questionar o motivo de tal sorriso. E o sujeito sorridente contou a todos o seu segredo. Há tempos havia encontrado uma rosa, sem espinhos, e que, ao cuidar dela com todo carinho, sentia-se, ao mesmo tempo, sendo cuidado. Sentia-se encantado por aquela flor que, além de não fazê-lo sentir-se incomodado, o fazia sorrir.

Na primavera daquele ano, os que se sentiram tocados, cada vez multiplicados, floresceram os sorrisos e florearam o mundo afora.

26 de abril de 2008

Revolvendo

O mal resolvido
Revolve-se
Embrulha o estômago
E aperta o pescoço

Comprime os ombros
Com o peso da insegurança
Liquefaz, no fundo dos olhos
A esperança

Escorre

Os lábios consolam-se
E as mãos, medrosas
Agarram-se

Seguimos inseguros
Caminhando sem dar um passo
Na inércia de um abraço

25 de abril de 2008

Envolvente

Envolvo
Dou nó e laço
Braços de polvo
Beijo e abraço

Neste retrato
Que logo faço
Eu sou contorno
Ela é o traço

24 de abril de 2008

Dissolvido

Derreteu-se por ela como picolé.

Grudento e melado, acabou sendo descartado.

Desfez-se em uma poça de lágrimas, liquidado.

22 de abril de 2008

Caras e bicos

Fazendo charme, ela comentou:

- Você me cansa com estes elogios baratos.

Nitidamente chateado, emburrado, ele respondeu:

- Para você, eles eram de graça.

Por aquele olhar e aquele bico, ela soube que o comentário custaria caro.

20 de abril de 2008

Subsídios subversivos

A crise da produção de alimentos, uma crise anunciada e, agora, deflagrada.

E todos ficam tensos, ricos e pobres. Se falta comida, pobre passa fome. Se pobre passa fome, rico passa medo. Os jornais reforçam o clima, apontam os culpados com base em estudos do banco mundial e da ONU, departamentos do marketing institucional das nações ricas.

O que ninguém fala, ninguém nem ousa, é que a culpa é, em grande parte, como a de todos os grandes problemas do mundo, dos mesmos que apontam culpados. Não são os países pobres que oferecem subsídios agrícolas subversivos em relação ao livre mercado e a qualquer tipo de equilíbrio internacional. Os subsídios terroristas, que dizimam populações inteiras, a maior praga das lavouras dos países pobres.

E o ricos secam o poço do vizinho pobre e depois vêm dizer que, se falta grama para todo o gado, a culpa é do vizinho, com gramado seco e amarelado.

19 de abril de 2008

De nada adianta

A enfermeira entrou no quarto e disse, cautelosamente:

- Você precisa assinar a autorização.

O choro, contido, escapou em um impulso.

- Não tem outro jeito?

- Ele não está respondendo a nenhum tratamento, nenhum estímulo.

- Mas...

Outro impulso levou a voz e trouxe as lágrimas. A enfermeira aproximou-se e, em um gesto de solidariedade, pousou a mão sobre os ombros desconsolados.

Após pegar de volta a autorização, com assinatura em tinta e autenticação em lágrimas, a enfermeira disse:

- Se você quiser despedir-se, podemos aguardar.

- Não quero!

Disse, decidida, enquanto esfregava as lágrimas e completou:

- De nada adianta, não agora.

A enfermeira acompanhou-a para fora da sala.

Eu, ali deitado, ouvi tudo. Mas fiquei inerte, fingindo-me de morto.

18 de abril de 2008

Vendo-me

Rendo-me a esta situação deplorável.

Entrego-me a este sujeito desprezível.

Deixo-me levar como cadela afável.

E vendo-me, no espelho, ajeito batom e rímel.

17 de abril de 2008

Tragédia paulistana

Há muito tempo, no Paraíso, conheceu a mulher que viria a ser sua esposa.

Após vários anos de casado, desgastado, encontrava a amante na Consolação.

Atualmente, intercala finais de semana. Em uns, pode passear com os filhos pela Liberdade. Nos outros, segue sozinho, caminhando sem rumo.

16 de abril de 2008

Adaptação

Que bicho é esse? - Indaguei-me em pensamento.

Olhei mais de perto. Patas, antenas, redonda e com bolinhas, só podia ser uma joaninha. Mas, quem diria, uma joaninha preta e branca.

Deve ser por causa da poluição, não há outra explicação. É uma adaptação, que alguns ousam chamar de evolução. Neste mundo cinza, em que até as pessoas perdem a cor, nem as joaninhas são poupadas.

15 de abril de 2008

Decepções

A camisa que melhor lhe servia, encolheu depois de lavada. O sapato que não machucava o pé, não tinham mais nem em estoque. A bolacha que mais adorava, parou de ser fabricada. A árvore na qual se pendurava, o vento levou. A casa onde passou a infância, demoliram para construir um prédio.

Mas, sem dúvida, a maior decepção foi que o único amor que tinha, nunca pôde ter.

6 de abril de 2008

Mundano

O golpe ditatorial teve, no exército, seu braço armado.

E na imprensa, o desalmado.

5 de abril de 2008

Mantinha

Voltaram para casa antes de todo mundo e sentaram-se à varanda. Os planos eram outros, mas a mãe dela deixava a casa trancada, para evitar aquilo mesmo que os dois pretendiam fazer.

Com frio, ela buscou uma mantinha no varal, cobriu-se e sentou-se no colo dele. Meia hora depois, eles nem ouviram o barulho do portão. A mãe dela parou na frente da porta da sala e, enquanto procurava a chave, perguntou:

- Faz tempo que vocês estão aí?
- Não, Mãe. Chegamos... Há uns... 10 minutos. - respondeu ela, pausadamente.
- Você está tremendo, está com tanto frio assim?

Neste momento, ela aproximou-se e tocou a testa da filha com as costas da mão.

- Você deve estar com um pouco de febre, vou entrar e preparar um chá para você.

A outra mão dela encontrou a chave na bolsa e abriu a porta. Lá de dentro ela falou:

- Vocês não vão entrar?
- Vamos... Ficar mais um pouquinho.
- Então vou deixar a água esquentando e vou dormir. Boa noite. E nada de safadeza, vocês dois. Aqui na minha casa! - Completou a fala com uma gargalhada de quem sabia que não desafiariam sua autoridade.

Por baixo da manta, ela se contorcia de tensão. Ele, de prazer.

4 de abril de 2008

Ao cair da noite

- Eu derrubei o sol. Para que você pudesse ver as estrelas.

Foi o que disse o primeiro apaixonado, à primeira musa, no primeiro pôr-do-sol.

2 de abril de 2008

Podando pela raiz

As luzes do carrossel e o som do sanfoneiro não deixavam dúvida, a cidade estava em festa. As crianças no tromba-tromba, os casais na roda-gigante e as senhoras na varanda da casa da dona Maria, observando tudo e comentando sobre aquela pouca vergonha. Tudo estava bem até que a briga começou. E a briga foi feia, sobrou soco para todo lado. Os dois se empurravam e se chutavam, se seguravam e se socavam. Rolaram pela lama e nem a turma do deixa disso conseguia separá-los.

João Sem Braço, sujeito sempre indeciso, abriu caminho na roda para ver o que é que acontecia. Quando viu seus dois amigos, lutando como leões, como era de se esperar, não soube o que fazer. Pensou em deixá-los brigando, uma hora se cansariam, cairiam para o lado, se abraçariam e fariam as pazes.

Mas João achou que estava errado quando Maneco pegou a faca. E teve certeza quando Caetano não hesitou em empunhar o bico de uma garrafa quebrada. Pela primeira vez na vida, João tomou uma decisão. Não pensou duas vezes, sacou a pistola e apertou o gatilho. Foi um tiro só, preciso.

Após um breve silêncio, só ouviu-se o último suspiro de Sara, caída no meio da roda, envolta em manto de sangue. A briga acabou.

1 de abril de 2008

Ditadura do silêncio

No país da impunidade, faz-se exceção à Lei do Silêncio, a única respeitada e temida.

Quem cala, contente. E os que ousam desafiar a lei, arruaceiros, sofrem as punições.

31 de março de 2008

Vazia

Entre o chão e a nuvem
Chuva

Chuva em movimento
Vento

Vento um tanto brando
Brisa

Sem visão nenhuma
Bruma

Entre o mar e a bruma
Espuma

Sobre nuvem e chão
Mar e visão
Nessa praia vazia
Poesia

30 de março de 2008

Mar de nãos

Saudades é o sentimento de impotência que sentimos diante do mar de nãos que se coloca entre os nossos sins.

27 de março de 2008

Desfigurado

Desceu daquele ônibus lambendo cada degrau com os pés. Sentiu o gosto quente do asfalto em sol a pino. Percorreu a praça dedilhando o aroma das flores enquanto o canto dos pássaros massageava suas pernas cansadas. Viu o toque do sino indo em sua direção, por todos os lados, ecoando pela catedral. Ouviu cada detalhe do que queria dizer cada escultura do museu. Deu voltas pela cidade em um cavalo branco e uma charrete tinta, amadeirada, com toques frutais e final suave.

Ao final do dia, ouviu o sol tombar no horizonte e, apesar do cheiro de chuva, não sentiu o gosto das nuvens. Durante a noite, todas as luzes eram artificiais, mas as sombras, caridosas, acolheram-no em suas camas e o cobriram com o sangue quente do jornal popular. Apesar do barulho dos tiros, zunindo a cada página e alojando-se em seu tímpano, dormiu.

No dia seguinte, acordou sendo lambido pelo sol, áspero, e continuou sua saga. Pegou o trem dos trilhos de pedra, de volta para Metáfora, ali do ladinho, logo depois de Eufemismo.

26 de março de 2008

Felicidade ao alcance das mãos

Descobriu, do alto do meio-fio, pela janela das cidades, a felicidade. Partiu em busca daquele ideal, irreal, vitrine do mundo paralelo. Nem tudo deu certo, mas chegou bem perto.

A felicidade ficou ao alcance de suas mãos. Seu primeiro emprego, função: empacotador da felicidade alheia.

25 de março de 2008

Sincero

- Oi, meu amor, estava com saudades?
- Seu, seu irresponsável! Vai viajar e demora dois dias para me ligar. Eu estava aqui, preocupada, achando que tinham sofrido um acidente, ficado parados na estrada. Ou pior.
- Desculpa. É que o celular está sem sinal e é bem difícil encontrar um telefone funcionando por aqui.
- Hum.
- Me desculpe, meu amor.
- Tudo bem. Está desculpado, mas não pense que isso vai sair barato.
- Eu compenso na volta, prometo.
- Hum, vou cobrar... Mas, então, me conte como está a pescaria.
- Não estamos conseguindo pescar nada, o rio está cheio de piranhas.
- Ah! Que azar, meu bem.
- É, mas estamos conseguindo aproveitar.
- Que bom, aproveite mesmo. E trate de voltar logo, estou morrendo de saudades.
- Eu também estou. Mas tenho que desligar. Amo você. Beijos.
- Também te amo. Beijos. Até logo.
- Até.



- Ei! Jorge, fala para essas piranhas saírem da água. Não estou pagando para elas ficarem se divertindo no rio.

24 de março de 2008

23 de março de 2008

22 de março de 2008

Felino

Desconfiado, ficava de pêlo eriçado ao menor sinal de ameaça, fumaça. Às vezes havia fogo. Em outras, afago. Mas ele, precavido, preferia ficar escondido.

Na última vez que se escondeu, sozinho, se perdeu. Do cão ninguém esquece, mas o gato também enlouquece.

21 de março de 2008

Mulher bomba

Por dentro, explodia um não. Mas o único som que se ouviu foi o daquela voz, suave e sofrida:

- Aceito.

E prosseguiram com a cerimônia.

20 de março de 2008

Infantil

A única fábrica de brinquedos da cidade foi fechada.

Pela primeira vez, todas as crianças comemoraram o fechamento de uma fábrica de brinquedos. Finalmente poderiam voltar a frequentar a escola.

19 de março de 2008

Violência

As batidas e gritos viraram a trilha sonora da rotina.

A entrada dos metais, graves, adicionou tensão.

E no fim, só se ouviu um sopro, agudo.

18 de março de 2008

Pior emprego do mundo

* Roteiro para curta-metragem


Eu tenho o pior emprego do mundo. Acredito que se você procurar pelo Google "pior emprego do mundo", vai encontrar uma breve descrição das minhas funções.

Meus amigos já me aconselharam a pedir demissão. Dizem que seria melhor não fazer nada a fazer o que eu faço. Às vezes eu penso que eles estão certos.

Quando eu era pequeno e me perguntavam o que eu queria ser quando crescer, eu dizia "chefe". Hoje, vinte cargos em 5 departamentos me separam do chefe.

Estava pensando em abrir um negócio, mas eu não tenho dinheiro. Eu podia arrumar um sócio, mas ele acabaria me passando a perna. É assim que as sociedades funcionam.

Também considerei aquelas oportunidades de ganhar dinheiro sem sair de casa. Mas, é mais fácil acreditar no "enlarge your penis" do que naquilo.

Acho que é melhor continuar na mesma. Quem sabe não me promovem. E dão o pior emprego do mundo para outra pessoa.

17 de março de 2008

Sensações

A beleza poética dos teus lábios

E o aroma suave do teu pescoço

Soam como doce ao toque dos meus cílios

16 de março de 2008

Pontinhos

Durante a noite, na praia, viu as luzes dos barcos em alto mar, isolados. Pensou em quão triste seria viver dessa maneira, passar o dia no mar, trabalhando, e à noite virar um pontinho em meio a outros pontinhos perdidos na escuridão.

Quando voltou para a cidade, reparou nos pontinhos empilhados e, ainda assim, isolados.

15 de março de 2008

Do mesmo saco

Na história com muito bandido, o mocinho acabou vendido.

E a mocinha, coitada, disse que nem suspeitava, não imaginava, que as jóias que ela ganhou haviam sido roubadas.

14 de março de 2008

O olho

- E como vai a saúde?

- Mal.

- Mas já descobriram o que é que você tem?

- Já sabem. Os médicos são muito bons.

- E por que é que ainda não te trataram?

- Eles até receitaram um remédio...

- E por que você ainda não tomou?

- É que custa o olho que não é o da cara.

13 de março de 2008

Sou passado

Suspiro contido
Lágrima escorrida

Sem chance
Nem esperança

Sou o vulto de relance
A vaga lembrança

11 de março de 2008

Sem opção

Quando a programação é padronizada

E a produção cultural é vendida

O controle é remoto

10 de março de 2008

Incentivo

Estava desanimada e confusa. Parecia perdida, balbuciando bobeiras, vomitando palavras vazias sobre os vãos de sua vida. Ela queria desistir de tudo. Quase desistiu, mas foi interrompida por um colega:

- Bola para frente! Não pare!

Olhou para ele, ainda mais confusa. Não entendeu aquela súbita preocupação com ela, sempre deixada de lado. Quase sorriu, mas ele completou:

- Bola para frente que este é fino.

9 de março de 2008

Revide

Ele, agressivo, cantou de galo.

Ela, decidida, não pensou duas vezes. De sapato ponta fina, deu de bico no pintinho e, de quebra, nos ovos.

Mulheres

Contrariado, Francisco matou José de tiro. Antes do sangue secar, Severino matou Francisco na faca. Por vingança, Chiquinho matou Severino a golpe de enxada. Traiçoeiro, Zico colocou uma cobra na cama de Chiquinho. Traiçoeira, a cobra mordeu Zico também.

Só sobraram as comadres, que sentaram à varanda, agulhas à mão, e comentaram com desdém:

- Esses homens...

7 de março de 2008

Rejeitado

Declarou-se.

Não correspondido, chamou-a de puta, pagou a foda e foi embora, batendo a porta.

Só chorou quando chegou ao carro.

6 de março de 2008

Hamurábi

Após ser pego roubando, não teve escolha, aprendeu a andar de bicicleta sem as mãos.

5 de março de 2008

4 de março de 2008

Luto

Regou o túmulo por dias, até secarem os olhos, vermelhos e ásperos.

Uns dizem que foi por compaixão. Outros, sussurram que foi por culpa.

3 de março de 2008

Vaga

Lutou por aquela vaga como se fosse a última.

Agarrou a oportunidade com unhas e dentes e deu tudo de si.

O patrão, saciado, só reclamou um pouco dos dentes.

2 de março de 2008

Religioso

De tempos em tempos, sacrificava mais um virgem em seu altar.

Trocava de vítima para evitar que o povo suspeitasse.

27 de fevereiro de 2008

Intenção

Ela chegou chorando, nervosa. Ofereci meu ombro, ela aceitou.

Ofereceu-me a boca, eu aceitei. Não sei se por consolo ou por vingança.

26 de fevereiro de 2008

Transversais

Ela era intangível, mas o destino é uma incógnita.

A conversa paralela acabou na horizontal.

22 de fevereiro de 2008

Carta de um poeta puto, mas educado II

Me assolam a memória
Sua alma e seus desejos

O resto virou lembrança

Vagas lembranças
De seu corpo vago
Sua vaga bunda

21 de fevereiro de 2008

Fim dos dias do vilão

Engana-se quem pensa que, algum dia, ele se arrependeu.

Morreu sorrindo o filho da puta. Sabia que a mídia, a seu serviço, na terra ou no inferno, o transformaria em herói.

20 de fevereiro de 2008

Exemplo

- Vai, filho, igual da outra vez.

O garoto tremia. Mas, com o martelo na mão e com os olhos lacrimejando, obedeceu. Foram ambos para o pronto-socorro.

O pai, mais tarde, justificava-se à própria consciência. Repetia para si mesmo, em voz alta, que precisava do remédio.

19 de fevereiro de 2008

Segura

A garota, mais uma vez abandonada, queria saber como segurar um homem.

A avó, realista, deu a dica:

- Faça pompoarismo.

16 de fevereiro de 2008

Entre amigas

O sorriso de hiena se desfez. Embrenhou-se pelos cantos da parede, como se andasse pelo rodapé. Curvou-se para olhar pela quina da porta. Confirmou que a outra se afastava e, então, disse:

- Eu não disse? Essa vagabunda, falsa, nunca me enganou.

14 de fevereiro de 2008

11 de fevereiro de 2008

Carta de um poeta puto, mas educado

Você foi meu sol
Mas agora, tua luz
Faz doerem meus olhos
Inchados de vinho
E de lágrimas

Vá, dia

E não volte nunca mais

10 de fevereiro de 2008

Sermão

- Não faça com os outros aquilo que gostaria que fizessem contigo.

Ela sabia das perversões do filho, masoquista.

9 de fevereiro de 2008

Encantos

A saia bordada estava acompanhada por um bustiê tomara que caia, destes que fazia juz ao nome. Tinha a boca encoberta por um véu e uma cruz egípcia estrategicamente tatuada nas costas.

A cada troca de ritmo, trocava também os artefatos. Foram-se véus, espadas e címbalos nas pontas dos dedos. Deleitava-se em movimentos suaves, delicadamente fantasiosos.

Em nenhum momento ela retirou o véu que lhe cobria metade do rosto. Até porque, não precisava, bastavam aqueles olhos, olhos de Hórus.

8 de fevereiro de 2008

Final do verão

Ao final do verão, as cigarras invadem a cidade. Chegam queimadas pelo sol, trocando de pele.

As formigas, trabalhadoras, da cidade nunca saem. Para elas, o inverno é uma ameaça constante.

7 de fevereiro de 2008

Hora extra

Quando os filhos não estavam em casa, pediam para a diarista ficar até um pouco mais tarde.

Ela, solidária, passava pelo corredor fazendo barulho, como se pudesse entrar no quarto a qualquer momento. Conhecia bem as fantasias do patrão.

6 de fevereiro de 2008

5 de fevereiro de 2008

Impotente

Inevitavelmente, um dia ele chegava à conclusão de que não precisava delas e terminava tudo. Sempre acreditou que um dia precisaria de uma pessoa e que esta seria sua companheira pelo resto de seus dias.

Um dia ele descobriu que precisava de alguém, mas os dias que restavam seriam poucos. Poucos e solitários.

Estava tão debilitado, incapacitado, que ninguém precisava dele.

1 de fevereiro de 2008

Pérola aos porcos

Percebeu que nunca conseguiria sobreviver de sua arte. Trocou de corpo e de alma, de nome e de profissão.

Ainda assim, não deixou de lado suas letras, corrosivas. Tornou-se Pérola, prostituta.

31 de janeiro de 2008

Destino

Acordou no ônibus. Não sabia para onde estava indo, não fazia idéia.

Olhou em volta, apenas indiferença. Começou a ficar incomodado com a situação. Queria perguntar para alguém sobre o destino, mas tinha vergonha. Tentou olhar pela janela, mas estava no corredor e a senhora ao seu lado dormia, cortinas fechadas.

Depois de um certo transtorno, resignou-se com a situação. Nunca achou que fosse chegar a lugar algum... Algum lugar, qualquer que fosse, já seria ir longe.

30 de janeiro de 2008

Despedida de um arrependido

Apesar de ter descoberto cedo que te amava, descobri tarde que ainda te amo.

Porque agora você é outra e eu sou outro.

E meu sorriso, agora é de vergonha.

29 de janeiro de 2008

Final de tarde

Seria uma ofensa chamar o céu de azul naquele momento. Era uma mistura de rosa, laranja, amarelo e azul.

Sem aviso, veio o vento gelado que varre todo final de tarde, garantindo que esteja tudo limpo quando a noite chegar.

O sol, com frio, foi embora. E levou com ele todas as nuvens, para se cobrir.

28 de janeiro de 2008

Sentado

Sentei-me de frente para o mar.

E foi ali, observando o sol se pôr, criando mares no céu e montanhas nas nuvens, que eu percebi que meu mundo estava de ponta cabeça.

Pensei em algum jeito de voltar ao normal. Talvez uma cambalhota resolvesse, mas estava tudo tão agradável que resolvi ficar, ali mesmo, sentado no teto.

27 de janeiro de 2008

Culpa

Quando Ele apareceu, perguntando quem é que havia comido do fruto proibido, todos ficaram desesperados.

Adão, que não havia sequer se aproximado da árvore, não pensou duas vezes. Apontou o dedo acusador para Eva e disse que havia sido ela.

Os pássaros até hoje assobiam, fazendo-se de desentendidos

26 de janeiro de 2008

Saudosismo

Passei na casa dos meus avôs apenas para uma visita rápida. Inocência minha achar que conseguiria sair de lá antes da janta. Como sempre, minha avó convenceu-me a ficar para a janta. Segundo ela, estava preparando uma comidinha especial e, além disso, eu andava muito magro, muito branco, precisando comer bem. Decidi ficar.

Enquanto ela terminava os últimos preparativos para a janta, sentei à sala com meu avô para ver o jornal. Meu avô, esparramado na velha poltrona de couro, após duas ou três notícias, comentou:

- Bons os tempos em que só se roubavam corações...

25 de janeiro de 2008

Ao lado

Não entendiam-se muito bem. Tinham algumas brigas, discussões sem sentido.

Mas, viviam juntos. Afinal, não entendiam mais ninguém.

Um casal de loucos.

Desconfia

- Te amo.

- Já não falei que te amo também?

- Falou.

- Se eu já falei, por que é que você continua falando e me olhando com essa cara?

- Estou esperando.

- Esperando o que!? Vai ficar repetindo até quando?

- Até você acreditar.

23 de janeiro de 2008

Mulher da minha falta de sonhos

Sente o vazio no fundo do travesseiro. Revira-se e estica os braços em busca daquela presença. Uma esperança, nada além disso. Por mais que se deparasse com outro corpo, não seria aquele. Nunca mais foi.

Depois daquela noite, a cama sempre pareceu vazia.