14 de dezembro de 2009

Náufrago

Para não afogar-se nas águas turvas da realidade, agarrava-se aos sonhos, que estavam sempre à tona, com a esperança de chegar à terra firme.

13 de dezembro de 2009

O dono do banco

Sentei-me no único banco da praça que escapava do sol. Aquele que ficava bem de frente para o prédio comercial, um daqueles prédios de vidro escuro, com ar condicionado central, bunkers de proteção contra a liberdade e o ar puro. Ao menos era assim que eu via o prédio onde eu perdia oito horas diariamente, enclausurado.

Naquele horário o sol já estava mais baixo, mas, de terno e gravata, e ainda acostumado ao ar glacial do bunker, qualquer raio de sol ou bafo mais quente parecia derreter-me. Portanto, era convidativo aquele banco à sombra, uma raridade naquele horário, uma vez que a praça estava, como sempre, tomada por crianças saídas da escola e por diversos grupos de aposentados, que pareciam reunir-se ali para contar os vivos e lamentar os mortos. Lembro até hoje do dia em que reparei nisso pela primeira vez. Fiquei na praça até mais tarde, lendo um livro qualquer - provavelmente do Galeano - e vi uma senhora aproximando-se de um grupo e comentando: a Madalena não vem mais. A desesperança daqueles rostos cansados, abalados pela notícia, marcou-me.

Alguns instantes depois de sentar-me, mal havia dado tempo de encontrar uma boa posição para as pernas - já que só tinha tentado duas até aquele momento, um senhor veio caminhando em minha direção e disse:

- Você não tem outro lugar melhor para sentar?

Entendi aquilo como uma clara tentativa de tirar-me dali, mas decidi não abrir mão facilmente do meu lugar à sombra:

- Na verdade, tenho, mas nesse momento prefiro ficar aqui. Por quê?

- Esse é o melhor lugar para ver o pôr-do-sol.

- O senhor deve estar brincando, não é? Esse prédio enorme encobre tudo!

- Encobrir ele encobre, mas eu ainda consigo lembrar de tudo.

- Se o senhor vai imaginar, pode sentar-se em qualquer banco, são todos iguais.

Quando eu disse que eram todos iguais, ele franziu o cenho e elevou o tom de voz:

- Esse banco é diferente e esse banco é meu, seu moleque atrevido!

Diante da ofensiva, decidi não abandonar o barco e, muito menos o banco, rebati sem exaltar-me, ainda que infantilmente:

- É seu é? Por acaso tem seu nome escrito? Esse banco é público e eu não vou sair.

Percebendo minha teimosia, aquele senhor há instantes emburrado, estampou no rosto a desesperança marcante daquela mesma praça e disse, já virando as costas:

- Na verdade, tem.

Antes que ele se afastasse, afetado por aquela imagem, levantei-me e olhei para o banco. Tive que procurar um pouco, mas encontrei. Bem no meio do encosto, entre assinaturas com caneta bic e corretivo, estava talhado na madeira, bem fundo, um coração preenchido com dois nomes. Corri atrás daquele senhor, que já havia cruzado metade da praça, coloquei minha mão sobre aquele ombro curvado e disse:

- Seu Luis, me desculpe.







2011 - 7º lugar no XIII Concurso de Contos Alípio Mendes - Ateneu Angrense de Letras e Artes - Angra dos Reis - RJ;
Publicada na coletânea do concurso

12 de dezembro de 2009

Limites

Era um grande garoto. Pelo menos era isso que os pais, tios e avós diziam sempre. Na maioria das vezes, ainda completavam o elogio com um afago em notas contadas, não importando se ele estava certo ou errado.

Com o tempo, aqueles que o cercavam seguiram envelhecendo e crescendo. Mas ele, por alguma razão obscura da natureza humana, encolheu. Tornou-se um sujeito mesquinho, um homem pequeno.

11 de dezembro de 2009

Sucessão

Entristeceu-se profundamente com a notícia da morte do avô. Era a primeira vez que teria que lidar com a morte de alguém - que nem era tão próximo, mas que era muito querido. Já haviam falecido outros parentes mais distantes e amigos da família, mas, apesar da insistência dos telejornais, a mãe tentava mantê-lo afastado do tema delicado - ao menos até aquela cinzenta manhã de chuva fina.

Após vestir a melhor roupa de domingo e, por cima dela, o casaco vermelho de gorrinho, entrou no carro calado e seguiu cabisbaixo durante as duas horas de estrada. Por vontade própria não falaria uma palavra, mas respondia monossilabicamente as perguntas da mãe, que tentava consolá-lo.

Ao chegarem à capela da pequena cidade, muitos dos parentes já estavam por lá. Também já estavam presentes no velório muitos dos amigos do seu Alfredo: o pessoal da bocha, a turma dos bingos e dos jantares dançantes (as pessoas eram as mesmas, só trocavam os dias, com bingo na quinta e baile no sábado) e, por fim, os que jogavam truco e dominó na praça (essas turmas eram diferentes e, inclusive, como dizia o seu Alfredo, que costumava apaziguar os ânimos, disputavam as mesinhas a unhas e dentaduras).

Quando pararam o carro e o garoto desceu, os amigos do seu Alfredo, compadecidos com a presença da criança, viraram-se para ele com os olhares bondosos de quem cuida. Observando a cena, o garoto lembrou-se do ano anterior, quando havia morrido o cãozinho que ele tinha desde quando nem se lembrava. Recordou-se que, no dia seguinte ao do atropelamento, a mãe o levou à loja de animais. Naquele momento, percebendo-se em meio a dezenas de opções, respirou fundo e sorriu, reconfortado.

10 de dezembro de 2009

À parte

Voltando para casa, invariavelmente passava diante do mercado. Pensou em entrar para comprar um bom vinho para acompanhar o jantar, mas quando chegou na frente, desistiu. Não passou reto porque a multidão que começava a aglomerar-se obrigou-o a desviar, mas, avesso a confusões, passou direto.

Enquanto ele passava, observou de relance que os seguranças estavam cercando uma senhora que parecia estar tentando atingir-lhes com uma sacola de tecido cheia de compras, também ouviu as pessoas comentando que ela já havia atirado outras mercadorias contra os funcionários do mercado. Permaneceu indiferente à cena e aos comentários, era também avesso às fofocas e burburinhos.

Continuou andando para casa, mas percebeu que enquanto ele andava, a notícia corria. Mal havia andado meia quadra e já via o assunto chegando na esquina, mais ou menos na mesma altura do congestionamento causado pelos motoristas que passavam devagar, tentando espiar alguma cena da confusão por entre os passantes, que no momento estavam parados, mas logo passariam. Sentiu-se incomodado ao ver que todos pelo caminho comentavam e aumentavam a situação vexatória dos envolvidos, mas o máximo que podia fazer era manter-se indiferente e não aumentar a onda - que a esse momento já estava enorme. Na esquina já comentavam que alguém estava atirando pedras e pedaços de pau para todo lado, que havia feridos.

Ao entrar no saguão do prédio, acreditou ter despistado a notícia que o cercava desde o mercado. Mas foi então que o porteiro comentou sobre a atuação violenta da polícia, há pouco tempo, em uma situação com reféns no mercado. Olhou para o porteiro e percebeu que ele falava com um morador que estava sempre por ali, sentado na poltrona - que talvez fosse até dele e não do condomínio, porque nunca havia visto nenhum outro morador usando-a. Sentiu-se aliviado porque podia poupar-se de fazer qualquer comentário em relação ao caso, até porque, caso comentasse, reduziria aos fatos o acontecimento que havia provocado tantas reações e, de fato ou ficção, agitado um bom tanto a vida um outro tanto monótona dos que deixam para viver no final de semana.

Quando entrou no apartamento, finalmente livre, sentiu-se superior aos que sucumbiram ao burburinho, às fofocas e conduziram uma simples confusão de saída de mercado a um conflito armado.

Começou a preparar o jantar e a repensar os acontecimentos do dia. Após alguns momentos de reflexão, sentiu-se angustiado porque, de fato, o que acontecera de mais interessante no dia foi o rebuliço na porta do mercado, que podia ter se tornado parte do seu dia se acaso não tivesse se esforçado tanto para ignorá-lo.

Um pouco depois que ele terminou a janta, especialmente preparada para a esposa, ela chegou. Cumprimentaram-se com um beijo - sem abraço por conta das mãos engorduradas - e, então, ele perguntou:

- Demorou um pouco mais hoje, muito trânsito?

- Essa rua ali da frente estava um pouco parada. Parece que houve alguma confusão no mercado. Você ficou sabendo algo?

Diante da pergunta a ele direcionada, o estímulo que lhe faltava, não conseguiu conter-se:

- Parece que alguém tomou um tiro no mercado.

9 de dezembro de 2009

Livre

Praticamente nasceu viajando. Ao longo da vida, rodou o mundo todo, da África do Sul para o Brasil, de lá para a China, para a Rússia, França, Inglaterra, Japão, Estados Unidos e diversos outros cantos.

Antes de dormir, agradecia por ter nascido mercadoria - e não gente.

8 de dezembro de 2009

Campo de batalha

O toque da alvorada soou, como soava todo dia - às vezes adiantado, mas nunca atrasado - indiferente ao resto do mundo. Ele despertou imediatamente e começou a preparar-se para mais um dia de duros embates. Batalhou de sol a sol e, quando este escondeu-se atrás das montanhas, dificultando a visão, ele recolheu-se também ao barracão de pau a pique, chão de terra batida, construído bem no meio da clareira, com material catado ali pelas cercanias.

No dia seguinte, novamente, antes das cinco horas, o galo canta.

6 de dezembro de 2009

Miserável

- Mais um!

- Desculpe-me pela indiscrição, mas o senhor já não tomou muitos?

- Mais um, porra! Não estou perguntando merda nenhuma, eu quero mais um! Eu pago a merda do seu salário, quero tomar mais um e você tem que me obedecer!

Abaixando a cabeça, o garçom atendeu-lhe prontamente. Era mais um sorriso que ele mandava goela abaixo, embebedando-se do pouco poder que tinha.

5 de dezembro de 2009

Visita

Ansioso pelo encontro marcado, limpou a casa toda. Há anos o chão, finalmente descoberto da camada de poeira, não brilhava tanto - com exceção do chão da cozinha, que agora estava opaco, livre do óleo de fritura dos lanches rápidos. Alguns cantos que fugiam à vista ainda deixavam a desejar, mas seria pedir demais àquelas juntas desgastadas.

Após conferir cada detalhe dos preparativos para o jantar, pegou o porta-retratos na segunda prateleira da estante velha, o beijou, pediu desculpas e o colocou na gaveta. Poupou ambos do sofrimento.

4 de dezembro de 2009

Cavando

Desconfiada, começou a questionar, investigar e acusar.

Sentindo-se enganada e muito irritada, cavava cada vez mais. Mas quanto mais fundo chegava, maior era a ausência de respostas, de pistas ou de provas.

Com o tempo, de mãos vazias, já estava quase desistindo da função quando percebeu que um pouco de terra lhe caiu na cabeça. Após olhar para cima, protegendo a vista mal acostumada do único feixe de luz que chegava àquele buraco, desabou em lágrimas. Percebeu-se cavando a própria cova. Viu que era ele, esgotado, que tentava enterrá-la no passado.

3 de dezembro de 2009

Conflito de gerações

De olhos fechados, deixou-se levar pelo som de Sgt. Pepper´s

Tal qual Alice, desnorteada, demorou para voltar a si, retomar as trilhas ruidosas da rotina

2 de dezembro de 2009

Bloqueio

informação
pra quem tem acesso

opinião
pra quem tem saída

liberdade de expressão
pra quem tem créditos

1 de dezembro de 2009

Geração espontânea

Ao cair das primeiras gotas, das chuvas ou garoas, germinam, instantâneas, sementinhas de congestionamento