27 de dezembro de 2007

O barquinho

- Então, vamos simplificar. Você não gosta de mim e eu também não gosto de você.

- Mas, eu gosto de você...

Uma nova luz, um novo brilho, tomou conta dos olhos dele:

- Gosta?

- Gostava.

Depois de falar esta frase, ela deu as costas a ele. E foi como se o farol voltasse a luz para o continente. O barquinho naufragou.

Como que sem querer

O amor chega de fininho.

E, por mais que chegue em silêncio, desperta curiosidades.

Também acorda os medos, que têm o sono ainda mais leve, transtornados.

Superficial

Ficamos atados às belezas e aos prazeres da superfície.

Mas a culpa não é nossa. De onde se vê a beleza interior, é impossível sair por vontade própria e, uma vez que se é expulso, a vontade de estar ali equipara-se ao medo de ser expulso mais uma vez.

25 de dezembro de 2007

Criminoso

O mercado de trabalho continua executando crimes perfeitos.

Sequestra as almas e pede em troca, como forma de resgate, as forças do corpo.

E as vítimas só percebem tarde que de nada vale uma alma torturada, repleta de medos, somada a um corpo calejado, exausto.

18 de dezembro de 2007

Plantando pedras

Por toda a vida, plantou pedras. Quando havia uma flor no meio do caminho, arrancava e plantava mais uma pedra no lugar.

Algum tempo depois, quando as pedras brotaram, seu mundo ficou todo cinza. Ela, entristecida e só, nunca mais floresceu, virou pedra.

Baile de máscaras

Nenhum dos dois conseguia se envolver, desenvolver confiança, intimidade, cumplicidade; esses detalhes que sustentam um relacionamento. Sabiam que era coisa de uma noite, uma semana, com sorte, um mês.

Mas, estavam decididos a tentar, vestir as máscaras e ver até onde a mentira os levaria. E levou longe, até que a morte os separou.

17 de dezembro de 2007

Tulipas negras

Ouvia, via e sentia a tristeza alheia. A angústia lhe estufava o peito, o ar ficava pesado e os ombros recolhiam-se enquanto as mãos passavam pelo rosto suado.

E foi assim em todas as vezes que se deparou com as tulipas negras, desdentadas, bocas do desespero.

12 de dezembro de 2007

O golpe do século

- Preciso que você me conte como é que você fez para resolver aquele rolo da clonagem.
- E que rolo! Deu um trabalhão...
- Sério?
- Sério. Demorou meses até resolver tudo.
- Putz!
- Não me diga que também aconteceu com você?
- Aconteceu.
- Que lástima...
- Mas então, como foi que aconteceu?
- Foi assim, nós viajamos para São Paulo e um ano depois chegou a intimação para ele comparecer ao tribunal. Quando chegamos lá, havia um processo correndo e exigindo um monte de dinheiro.
- Mas e daí?
- Daí que na época não era um golpe conhecido. Foi um dos primeiros. Tivemos que chamar vários especialistas para provar que tinha sido clonado. Foi um sufoco. tivemos sorte de poder contar com o apoio dos maiores especialistas. E ainda mais sorte por terem encontrado o sujeito que foi obrigado a fazer o serviço. Ele entregou os culpados.
- Espero que a gente dê sorte.
- Agora é mais fácil. Já não é todo mundo que cai no papo destes golpistas. E, além disso, é bem mais fácil provar a clonagem.
- Tomara.
- Tem idéia de onde foi?
- Acho que sim. Fiz as contas e acho que clonaram o meu quando viajamos para o nordeste com escala no Rio.
- Aeroporto é um perigo. Tem que ficar atenta a cada fio de cabelo. Senão, depois, aquele safado tem um filho com alguma vagabundinha e vem falar que é o golpe do clone de novo!
As duas caíram em gargalhadas.

11 de dezembro de 2007

Metódico

Levava tudo à ponta do dedão do pé direito da letra.

Nunca nem fez questão de saber o que estava além da simples soma das letrinhas.

Morreu sem saber se ela disse sim ou não.

Meio cheio

Ele andava sempre com um copo na mão. Um copo enorme, laranja. Era impossível não notar o copo. Antes de sair de casa ele enchia o copo de água e ia bebendo durante as andanças.

Um dia qualquer, ele começou a marcar as distâncias pelo tanto de água que restava no copo. Um tempo depois, já sabia a distância em copos até os pontos mais importantes da cidade. E falava com uma convicção de não deixar dúvida: "Até o museu da meio copo", "Quase um copo até o calçadão", "Dois golinhos e estou no mercado".

Depois de algum tempo, um sujeito um tanto cético quanto às medidas o questionou:

- E, toda vez que você vai aos lugares dá a mesma distância em copos?

- Não. Varia.

- Varia com o que?

- O clima.

- Então a medida não dá certo?

- Dá sim, certinho. No calor sempre parece que é mais longe.

4 de dezembro de 2007

3 de dezembro de 2007

Espetáculo

A noite de estréia é um espetáculo. Mágico, incomparável.

As noites seguintes já não têm o mesmo encanto. Os sorrisos já não são mais os mesmos.

Algum tempo depois, ela junta as tralhas e toma outros rumos.

Paixão itinerante.

1 de dezembro de 2007

Embriagado

Todas as coisas e idéias tendiam para a esquerda
Depois, inclinaram-se um bom tanto para a direita

Então rolaram para o centro e por ali ficaram
No equilíbrio frágil de uma mesa de boteco

O álcool e a política têm efeitos semelhantes

30 de novembro de 2007

29 de novembro de 2007

Nossos nós

Atamos os nossos nós
Encontramos a nossa calma

Se você canta eu sou sua voz
Se sou poeta, você minha alma

Não dito

Entendido
Pelo pouco dito

Presumido
Pelo não dito

Arrependido

O que ela teria dito?

24 de novembro de 2007

Destino bipolar

Em alguns momentos
A sorte sorri para mim

Mas no momento seguinte
Emburrada
Franze o cenho, faz bico
E me dá as costas

23 de novembro de 2007

Rêve

Se rebeller

C'est en quelque point

Entre rêver et réveiller



Sonho


Se rebelar

Está em algum ponto

Entre sonhar e acordar

Sem tempo para pensar

Em meio à pressa

As nobres causas são esquecidas

E sobram as consequências

19 de novembro de 2007

Passagem

Acredita-se que a vida é uma passagem

Tem origem e destino
Uns têm lanche
Uns têm espaço
Outros não tem nada

Quem tem espaço e comida
Deita e estica as pernas
Quem não têm
Fica em pé e passa fome

Mas o ônibus está ficando lotado
A gasolina está acabando
E a água já acaba também

Logo logo, o motor funde
E ficaremos todos parados
Perderemos a viagem

Fazendo as pazes

Às vezes tenho lá meus desentendimentos com o mundo. Ficamos brigados, ambos emburrados e em silêncio. Ontem mesmo tivemos uma briga feia. O mundo pode ser bem cruel de vez em quando.

Mas ao final da tarde, uma borboleta pousou ao meu lado na rede. Chegou, me olhou e ali ficou, batendo asas como se dançasse. Aceitei as desculpas imediatamente, sem pensar duas vezes.

Sobre o começo

Você me apresenta seu mundo
E eu te apresento o meu

Quem sabe até construímos um outro
Só nosso

Lugar ao sol

E todas as flores lutavam entre si
Por um espaço
Um galho mais alto
Um degrau acima

As que conseguiam, morriam
Queimadas pelo sol

Imprevisível

Uma batida fora de compasso

Se somos música
Quero ser jazz

14 de novembro de 2007

Fazendo música

Passo, inspiro, passo
Passo, expiro, passo
Passo, assobio, passo
Passo, suspiro, passo

Coço a cabeça
Passo
Engulo saliva
Passo

Subo as escadas

Degrau, degrau, degrau
Passo
Degrau, degrau, degrau
Passo

Giro a chave, passo
Abro a porta, passo
Passo
E fecho a porta

13 de novembro de 2007

Matematicamente

Sempre se deu bem com números

Somando investimentos
Fez os números se multiplicarem

Em relação aos outros, subtraia
Nunca aprendeu a dividir

12 de novembro de 2007

9 de novembro de 2007

A arte

A beleza está nos olhos de quem vê

Nos traços de quem a desenha
Nas cores de quem a pinta
Nas cenas de quem a filma
Nos quadros de quem a fotografa
Nas palavras de quem a descreve

Mas neste instante
Neste momento preciso
E precioso
A beleza está nos olhos de quem lê

8 de novembro de 2007

Insone

No meio da madrugada
Não sei se pensei nela dormindo
Ou se acordei pensando nela

Não sei se acordei para trazê-la ao mundo
Ou se ela me acordou, inquieta
Ansiosa para sair do mundo das idéias

6 de novembro de 2007

Memórias

Desde aquele dia, virei um fantasma
Uma sombra
Um vulto

Aquele reflexo no espelho
No qual você não se reconheceu
Aquele era eu

5 de novembro de 2007

Queimação

Escrevo porque passo mal

Não consigo digerir este mundo

E vomito palavras

Ácidas

Suco gástrico literário

1 de novembro de 2007

Conclusão

A única conclusão a se tirar
De um planetinha tão agradável
Destruído da maneira como está sendo
É que, às vezes
Pessoas ruins acontecem a coisas boas

Ahn?

- Se eu morasse na Escócia eu ia andar de ônibus.

- Ahn?

- É. Porque o sistema de transporte público de lá funciona.

Ainda sem entender o sentido da conversa, ele questionou novamente:

- Ahn?

- Você estava ouvindo o que eu estava falando?

- Como assim?

- Eu estou aqui há meia hora conversando com você e você parece não ter entendido nada.

- Meia hora? Claro que não, você acabou de chegar e falar que você andaria de ônibus se morasse na Escócia.

- Sério? Não... Não pode ser. Eu estou conversando com você faz tempo.

- Tem certeza?

- Absoluta. Você tem certeza de que eu não estava aqui?

- Acho que sim. Ou melhor, que não. Que não estava. Estava?

- Acho que estava.

- Tem certeza.

- Acho que não. Ou melhor, acho que sim, que estava. Mas não tenho certeza agora.

- Mas por que é mesmo que você falou sobre andar de ônibus?

- Porque o sistema de transporte de lá funciona.

- Não. Não isso, por que é que você falou sobre a Escócia?

- Não sei. Mas é um país legal.

- É.

- Se eu morasse lá eu ia andar de ônibus.

- Eu prefiro caminhar.

- E se fosse longe?

- Daí eu ia de bicicleta.

- E se estivesse frio?

Ele abaixou a cabeça, ela virou para o lado e, depois de alguns segundos de silêncio, ele falou:

- Se eu morasse na Escócia eu ia andar de ônibus.

- Ahn?

30 de outubro de 2007

Um par de brincos

Em meio à multidão, ele olhou para o chão e viu algo brilhante. Com muita dificuldade, abaixou-se e juntou o pequeno objeto do chão. Era um brinco, o tipo de coisa que só se encontra quando não se está procurando.

Deu uma olhada em volta. Não demorou para notar uma garota que olhava para o chão, como se procurasse por algo. Após reparar na garota, espremeu-se entre a multidão, chegou até ela e perguntou:

- Procurando algo?

Ela levantou o rosto e sorriu, ainda que fosse um sorriso um tanto chateado, e respondeu:

- Perdi meu brinco.

Então foi ele que sorriu, abriu a mão esquerda expondo o achado e disse:

- Este aqui?

Ela sorriu. Agora um outro sorriso, inexplicável, imensurável.

Não era o brinco dela. Nem ao menos combinava com a roupa que ela estava usando. Mas os brincos formaram um belo par.

Livre interpretação

Não imploro. Não peço. Nem ao menos insinuo

Não declaro. Não escrevo. Nem deixo a entender

Mas uns ainda ousam. Se assanham, corajosos, a explicar o que não tem sentido.

Não dá para entender este mundo, sem sentido, que eu tento explicar aqui do meu mundinho.

26 de outubro de 2007

Povo das sombras

O povo das sombras aparece sempre no mesmo horário, junto com as sombras, assim que o sol nasce. Sempre muito cedo... Ainda na madrugada mas, aparentemente, sem nenhuma ajuda de deus.

Preparam seu café antes de você acordar, limpam o escritório antes de você chegar, colocam o ônibus para rodar antes de você se aglomerar ao congestionamento... Ligam os motores e preparam a cidade para você só chegar e sentar na janelinha, exigindo serviço de bordo.

E você nem ao menos os enxerga, faz questão de desviar o olhar.

25 de outubro de 2007

Cinzas

Em uma metrópole qualquer. Debaixo de uma chuva fina, mas tão fina que se tornava quase invisível, caminhavam lado a lado, de mãos dadas, o garotinho e a mãe. A mãe ia andando com pressa, sem dar atenção ao filho, arrastando-o pela mão.

Quando pararam em um cruzamento, esperando o sinaleiro abrir, o garotinho girou o pescoço e reparou no mundo à sua volta: nas centenas de pessoas apressadas, nas plantas, pássaros, prédios e tudo o mais. Após uma breve análise, por sinal muito precisa, ele virou-se para a mãe e perguntou:

- Mamãe, se os passarinhos são coloridos, as plantinhas são coloridas, os prédios são coloridos e até mesmo a comida é colorida... Por que é que as pessoas são todas cinza?

E ele ficou olhando, esperando por uma resposta. Enquanto o rosto da mãe, por vergonha, passou de cinza para rosa.

19 de outubro de 2007

Revolução dos segredos

No início achávamos impossível, mas com o tempo nos acostumamos com a ideia: não havia mais segredos. Pensávamos na época que o que se produzia em nossas cabeças ficava, e sempre ficaria, restrito a nós. Mas um dia qualquer, não se sabe a data exata, alguns se mostraram um passo à frente: sabiam o que se passava na cabeça ao lado. E todos se indagaram sobre como isso era possível, elaboraram diversas teorias envolvendo psiquiatria, física quântica ou telepatia, mas sempre ficava faltando algo, um elo.

Depois de algum tempo, o fenômeno difundiu-se, algumas pessoas até deixaram de conversar, sabiam que a pessoa ao lado sabia o que estavam pensando, a sintonia era quase visível. E foi o termo sintonia que desencadeou a explicação mais aceita para o que acontecia: eram ondas. Não produzíamos apenas ondas sonoras e calor, mas a cada pensamento, a cada ideia, emitíamos ondas que até então não eram captadas e, em algum momento de evolução, passamos a ter a capacidade de captá-las.

Com a expansão incontrolável desta habilidade, não havia mais segredos, nada mais era só nosso: cada pensamento era compartilhado. No início foi extremamente complicado para as relações humanas, a sinceridade do pensamento contrastava com os esconderijos da fala e do silêncio. Mas foi ainda mais complicado para as relações sociais e políticas. Cada segredo estratégico, cada desvio de verba, tudo acabava escapando em um pensamento. E vários dos governantes foram desmascarados pelo movimento autodenominado In Veritas, que costumava abordar os políticos que ousassem transitar por locais públicos e indagá-los sobre suas ações frente ao governo e à corrupção. Por mais que as bocas se fechassem, a confissão era inevitável. Os mais poderosos chegaram a cogitar um equipamento que bloqueasse a leitura dos pensamentos, investiram bilhões, mas a única conclusão a que se chegou foi a do senso comum: não há barreiras para o pensamento.

Além do fim dos segredos, a liberdade de expressão fez-se efetiva quando ninguém mais precisava, ou até mesmo conseguia, pensar antes de expor uma opinião. O que também causou muito desconforto, pois a exposição de tantos conceitos acarretaria o fim da ditadura do pensamento. Foi então que se deu a última tentativa de conter a proclamada sintonia geral. A intenção era calar os pensamentos subversivos, e tentaram de tudo; Mas, nem mesmo o medo, semeador de silêncios, foi suficiente para conter a revolução dos segredos.

18 de outubro de 2007

Banho de sol

Dá até para sentir-se preso

Quando é preciso passar pelo caos

Para ir a um lugar um pouco mais tranquilo

17 de outubro de 2007

Passou o dedo pela cabeceira e mostrou para a garotinha deitada na cama ao lado:

- Olha essa sujeira, minha filha, isso aqui está uma vergonha!

- Mas não fui eu que sujei.

- Foi você sim. Está aqui no seu quarto.

- Mas...

- Nada de mas. Ainda hoje você pega um paninho e limpa. Quando eu voltar quero ver isso aqui brilhando.

A garotinha, ainda deitada na cama, refletiu sobre o pó em cima da cabeceira e sua relação de culpa em relação ao pó. E quando a mãe voltou, a cabeceira ainda estava toda empoeirada. Ela então cobrou a filha:

- Por que é que a cabeceira continua toda cheia de pó?

Com um ar de saber só de experiências feito, a garotinha respondeu, até com um certo descaso:

- Não adianta limpar. Vai sujar de novo. É pó de gente.

16 de outubro de 2007

Jardim de Inverno

Mãe e filho aguardavam pela consulta na sala de espera. Ela estava entretida com uma revista, lendo sobre a vida daqueles que menos se importam com a vida alheia. Enquanto isso, ele se divertia com a cara grudada no vidro. Desenhando na parte embaçada pelo próprio bafo, criando estórias e aventuras envolvendo a pequena selva que o encarava através do vidro.

Depois de um tempo, entediado, o garoto decidiu que queria explorar os territórios além-vidro, e questionou a mãe:

- Mãe, posso brincar neste quintalzinho?

- Não é um quintalzinho, filho, é um jardim de inverno. E não pode brincar nele, jardim de inverno é só para ver.

O garoto, ainda parado de frente para o vidro, pensou um pouco e respondeu:

- Eu quero ter um desses em casa.

- Não dá, meu filho, só gente com muito dinheiro consegue ter um desses em casa.

O garoto entendeu a lição.

Muitos anos depois, ele parou com o rosto colado no vidro da vitrine de uma das lojas mais caras da cidade. Desta vez, ele é que foi questionado:

- Papai, o que é que você está olhando?

- Jardins de inverno.

E seguiram em frente. Não dava para brincar além do vidro.

Consentimento

Sem sentimento

Invariavelmente

É um estupro

2 de outubro de 2007

Sobre os caminhos

Na direção contrária ao fluxo

Não tem carona

Mas tem sempre alguém para andar ao lado

Separação

Um dia ele acordou, lavou o rosto e parou na frente do espelho.

As escovas de dente já não estavam mais ali, ao lado da pia, uma virada para a outra.

E foi naquele momento que ele se deu conta.

20 de setembro de 2007

19 de setembro de 2007

Revisão

- O que você pensa sobre o raciocínio?

- O raciocínio é o pensamento que, de acordo com a razão, leva a alguma ação.

- E a razão leva em conta o que?

- O que é correto, justo. O que é mais certo.

- Mas e quando o que leva a uma ação é uma idéia ou objetivo errado, injusto?

- Também chamam de raciocínio.

- E você acha que é o termo mais correto?

- Talvez devessem chamar de raciocídio.

- Raciocídio ilógico.

E ficaram em silêncio. Raciocinando.

13 de setembro de 2007

Gerenciar o tempo

Dar um tempo
Tirar um tempo
Colocar um pouco aqui
Tirar um pouco dali

Um minuto para você
E outro para mim
Hora de comer
Hora de dormir

Horário de trabalho
Cronograma, prazo
Calendário

Fazendo do tempo gerente
Subalternos, vivendo em função
Dos desejos do relógio

12 de setembro de 2007

Viver e recordar

Depois de muito tempo, descobriu-se que, na verdade, os responsáveis pelas famosas pinturas nas cavernas não foram os homens, mas sim os antílopes, mamutes, tigres e gnus. Cada espécie havia feito suas pinturas em homenagem a seus mortos durante as batalhas do dia a dia. Somente após terem encontrado estes registros é que os homens começaram a fazer os seus também.

Atualmente, os homens são os únicos a manter registros além das marcas no corpo e na alma. Os outros animais não tem dúvida de que o homem vai ser o último a perceber que é melhor viver do que recordar.

31 de agosto de 2007

29 de agosto de 2007

Legítima defesa

O advogado alegou legítima defesa. E os juízes absolveram o comandante e mais 11 réus de todas as acusações: homicídio, agressão e uso abusivo de força

Mais um caso de legítima defesa, em defesa da ordem social

23 de agosto de 2007

Vítimas

Na ditadura do medo
Acaba-se preso
Por porte de esperança

Na ditadura do pensamento
Acaba-se exilado
Por formação de idéias

Na ditadura do silêncio
Acaba-se morto
Por tentativa de expressão

Em meio a tantas ditaduras
Acaba-se preso, exilado, morto
Dentro de si mesmo

7 de agosto de 2007

Capacidade

Desde que o tempo é tempo, as pessoas desejam ter a capacidade de enxergar através das outras. Sensações, sentimentos e os mais profundos pensamentos. E a essa capacidade, deu-se o nome de compreensão.

Nos tempos atuais, caminhando pela rua, percebe-se que as pessoas têm a capacidade de enxergar através das outras. E a essa capacidade, dá-se o nome de indiferença.

3 de agosto de 2007

O cheiro

Nem me importo mais em levar uma sacolinha ou jornal quando levo o cachorro para passear.

O cocô no chão não é mais um problema. As crianças não andam mais descalças e os executivos, engravatados e com sapatos, esses já cheiram à merda.

26 de julho de 2007

Pela rua

- Lá vem você de novo com esse sorriso de mulher fácil.

- Fácil mesmo.

- Bom que admite. Pecadora.

- Difícil deve ser olhar para essa sua cara de cu.

25 de julho de 2007

Idade das trevas

Foi-se, há muito tempo
O tempo em que a felicidade era compartilhada
E a tristeza comovia

Nesses novos tempos
A felicidade dos outros incomoda
E a tristeza...
A tristeza é alheia.

24 de julho de 2007

Todo dia

- Eu passo o dia todo esperando ela aparecer.

- Que triste isso...

- Não é triste não. Triste é quando ela não vem.

19 de julho de 2007

Invasão

De nada adianta expandir a mente

Se o terreno continua improdutivo

Mais vale um grão de subsistência

Que um latifúndio vazio

Sílabas limitaristas

Ao que ele respondeu em alto e bom tom:

- Vá contar as sílabas

poéticas, métricas, hipotéticas

no olho do seu cu!

16 de julho de 2007

O cão

Rodou pela rua mais escura e perigosa como se fosse seu território.

Rosnou para os carros, perseguiu as motos e atacou os pedestres.

Como todo macho rejeitado faria.


O cão 2


Perguntou-me se eu era possessivo.

Respondi que sim, desde o primeiro beijo até o momento em que rolo para o lado e me deito.


O cão 3


Dizem que não se deve olhar policial nos olhos.

Ele sente o medo.

Desesperança

Haviam começado o namoro há pouco tempo. Sorrisos, bicos, charmes e birras. Apelidos fofos e juras de amor.

Foi quando ele escreveu a carta de despedida, com a certeza de que a entregaria em breve. Sabia até os motivos da separação. Tinha tudo anotado, explicado, em palavras friamente selecionadas.

Nunca teve a chance de entregá-la.

10 de julho de 2007

Aqueles olhos

Aqueles olhos, em meio a tantos outros olhos e olhares.

Aqueles olhos que não olhavam de volta. Que pareciam perdidos em algum ponto entre a raiva e a decepção.

Aqueles olhos, lacrimejantes. Mas quem se importa? Ela é linda.

8 de julho de 2007

Sabia assobiar

Cabisbaixos, ambos, ele e o canário. Ele sentou-se na varanda, abaixo da gaiola e começou a assobiar, lenta e tristemente.

O canário, que até então nunca havia sequer piado, respondeu, com um canto rápido e alegre. Ele então sorriu, como nunca havia sorrido.

Não se sabe até hoje quem ensinou quem.

6 de julho de 2007

Conto de fadas

- Odeio fadas!
- Como você odeia fadas?
- Ah. Elas sempre aparecem com aquela coisa de deixar tudo perfeito... E não é assim que as coisas acontecem.
- Perfeito não, justo.
- Justo?
- Sim, justo. O próprio nome diz: contos de fadas, fairy tales, fairy é fair, justo, só que de um jeito mais carinhoso.
- Faz sentido.
- Contos de fadas terminam de um modo justo.
- É... Justo.

E viveram felizes para sempre.

4 de julho de 2007

Ela fugiu

No começo era papo de casal apaixonado, mas a fuga virou promessa.

Mas quando ela disse que fugiria comigo, não imaginei que fosse dessa maneira. Ela fugiu sim... E fugiu comigo, mas apenas com um pedaço meu. Fiquei desolado.

De início eu não sabia se foi por esquecimento ou de propósito, mas ela deixou aqui comigo um pedaço dela também. Guardei-o em uma caixa de sapatos, em cima do armário.

Um dia, entre goles e suspiros, peguei o tal pedaço... E descobri que não foi ao acaso. Encaixava direitinho... Na ausência do que ela levou.

1 de julho de 2007

Decepção

- E a borboleta?

- Fez um casulo e virou lagarta...

- Ah! Que pena.

- É... Acontece.

- Mas não se preocupe, tem muita borboleta no ar.

26 de junho de 2007

Vítimas

Na ditadura do medo

Acaba-se preso

Por porte de esperança

Incapacidade

Eram feitos um para o outro.

Ela muda. Ele cego.

Ela muda. Ele surdo.

Cansada de mudar sem ser vista ou ouvida, ela fez um enorme discurso de despedida. Ele mudo.

20 de junho de 2007

Inocência cruel

O pai e a filhinha de 5 anos no estádio. Dia de jogo, campeonato brasileiro, libertadores, campeonato regional, não importa.

Antes do início do jogo, entrou em campo um sujeito com uma perna amputada na altura do joelho, usando duas muletas e fazendo malabarismos com a bola. Batia balãozinho na coxa, peito, cabeça e não deixava a bola cair. Ao vê-lo, a garotinha apontou o dedo para ele e soltou sonoras gargalhadas.

- Olha, pai! Olha! - E continou rindo.

O pai - nesse momento constrangido pelo que ele mesmo classificou como inocência cruel - olhou para as pessoas na fileira de trás e deixou escapar um sorriso daqueles que diz: é uma criança, vocês sabem como é.

Depois do constrangimento, o pai virou-se para a filha - em uma tentativa frustrada de dar a ela uma lição aproveitando o exemplo - e disse:

- Filhinha, você viu aquele cara que esforçado. Mesmo com só uma perna ele consegue fazer tudo aquilo com bola. Imagine se ele tivesse as duas!

- Com as duas?

- É.

- Daí não é legal.

8 de junho de 2007

Sinais

Dificilmente saia de casa. Além disso, nenhuma peculiaridade daquela tarde quente dava o mínimo sinal de que o dia seria uma exceção. Do sofá da sala de visitas, local onde costumamos receber a pequena parcela do mundo com a qual nos relacionamos, apenas observava o formato das nuvens e os diferentes tons de azul e cinza, além do branco.

- É claro!

Exclamou em voz alta, irrompendo o silêncio que havia tomado a sala. Sentiu o leve incômodo que nos persegue quando ainda não sabemos que ninguém é normal. Seguiu-se ao incômodo um diálogo mental no qual prometeu a si mesmo que nunca mais falaria a sós. No final do mesmo diálogo, que por pouco não virou discussão, já duvidou que conseguiria cumprir a promessa.

A frase que irrompeu o silêncio da sala pareceu ter acordado a cidade. Então o alarme de algum carro ou casa, sem cerimônias, entrou pela janela e veio sentar-se ao seu lado no sofá. O alarme tocando e o mal-estar se iniciando. Começou a pensar que havia algo de errado, não sabia o que, mas algo o incomodava, algo estava errado. Imaginou que devia ser dentro de seu corpo, sabia que devia se cuidar melhor, e lembrou-se da avó dizendo que tudo que fazemos com o corpo é cobrado depois. Foi até a estante e agarrou seu livro sobre medicina básica, mas de nada adiantou, porque não sabia nem ao certo o que incomodava, se era dor de cabeça, no estômago, ânsia de vômito ou dor no peito, não tinha nenhuma certeza além do mal-estar. A este ponto estava difícil respirar, a testa suava frio, as mãos se cruzavam e passavam constantemente pelos cabelos, da testa até a nuca, e os dentes se comprimiam como se disputassem o espaço dentro da boca.

Os primeiros ônibus e carros começaram a circular pelas ruas e o barulho emitido por eles parecia rasgar a pele daquele corpo tenso, que nesse momento encolhia-se em um canto do sofá enquanto o alarme continuava a tocar. As mãos lhe cobriam os ouvidos, mas os visitantes indesejados gritavam rente à sua face. Buzinas, freadas, batidas, tiros, o som do vizinho de cima e a televisão do de baixo, o canto estúpido do vizinho ao lado no chuveiro enquanto os filhos dele jogam o videogame no último volume, o caminhão do lixo, o carro da polícia, a ambulância, o profeta do apocalipse, as crianças do coral natalino.

Em meio ao caos interno, o telefone tocando. Sempre é alguém querendo vender algo, sempre querem algo em troca por simples palavras. O telefone tocou, tremeu e implorou até cansar. Mas uma hora ele parou. Já era tarde, as visitas viram que era hora de ir embora, o silêncio tomou conta novamente. O corpo, antes encolhido, estirava-se pelo sofá, respirando com alívio e sem a tensão que se imprimira pelas horas que antecederam este momento. Agora a sós, pensou naquela tarde e, já esquecendo da promessa, disse a si mesmo:

- Esse mundo aqui dentro está muito perigoso. Amanhã eu prometo que vou passar o dia na praça.

Ninguém respondeu. Mas mesmo assim, dava para notar no rosto a descrença com a nova promessa.

31 de maio de 2007

O baú

E ela foi até o quartinho dos fundos. Em um canto escuro e empoeirado, encontrou o velho baú.

Levou o baú até a sala e começou a redescobrir tudo que estava ali guardado há anos. Tinha ali um sorriso sincero que já estava até um pouco amarelado pela falta de uso. Havia também uma porção de otimismo infantil, que apesar de serem infantis eram pelo menos dez vezes maiores do que os adultos. Também brincou um pouco com os sonhos, fantasias e ilusões. Encontrou até alguns medos, mas algumas peças tinham sumido com o tempo.

O velho baú rendeu bons momentos. Mas ao final da tarde, ela recolheu tudo do chão, fechou o baú e o colocou de volta no canto escuro e empoeirado. O sorriso, amarelado, acabou ficando esquecido debaixo do tapete.

9 de maio de 2007

Sete

- E quanto ao seu texto. Achei a idéia interessante, mas ficou um pouco confuso.

- Em qual parte?

- Não sei direito. Em tudo...

- Dê um exemplo.

- Por exemplo. Por que é que o nome é "Sete Dias" quando fica claro que passam apenas cinco?

- Isso é um detalhe. Para que interpretem o que quiserem quanto aos dias que faltaram. Pode ser porque o final de semana não conta. Ou porque ele perdeu dois dias no meio da memória, por qualquer coisa. Não é de grande importância.

- O título não é de grande importância?

- Não. Para o texto em si, se muito, serve como introdução.

- Mas o título tem que ser coerente com o texto.

- E não é?

- Bom, passam alguns dias, mas não sete.

- Se "Os Três Mosqueteiros" eram quatro, por que meus cinco dias não podem ser sete?

- Mas tinha um que era meio inimigo e que depois se junta de novo. Se o nome fosse quatro ia estragar a surpresa. E também soaria meio estranho... "Os Quatro Mosqueteiros".

- "Cinco Dias" me parece estranho. Pronto! Agora eu tenho uma boa desculpa?

- Não sei.

- Nem tudo precisa ter um amplo sentido por trás. Nem sempre precisa de regras.

- Mas tem que ter regras.

- Por que?

- Porque senão qualquer coisa que fizerem, cheia de erros, pode ser considerada arte.

- Mas a arte não é uma forma de romper com as regras e padrões?

- Mas imagine um texto cheio de erros.

- Imagine um quadro abstrato, ou algo surreal. Melhor ainda, cubista. Ou um filme, no cinema a regra é: introdução, ponto de virada um, conflito, ponto de virada dois, conclusão, final feliz. Só se for de acordo com as regras é arte?

- Não...

- O que é arte?

- Não sei. Você sabe?

- Tanto quanto você... Ou qualquer um.

Um breve silêncio. Deram os últimos goles da cerveja, retiraram o casco do suporte e acenaram para o garçom. Sinalizaram o início de uma nova rodada.

- Mas eu gostei do texto. Só não gostei do título.

- Eu coloquei o sete só para confundir mesmo.

30 de abril de 2007

A cadeira

Ali sentado. O cansaço bate. E nada acontece. E o cansaço bate mais forte. Bate no corpo, bate no rosto. Não há distração que faça o relógio correr. Ou ao menos andar. No momento, ele parece parado. Parado naquele momento. Todo o resto correndo. E ele parado.
Esperando.
Esparramou-se na cadeira. Como um sorvete que derrete-se na casquinha. Tomou a forma da cadeira. Inerte. Angústia, cansaço. Uma dor que não sabe ao certo se é no pescoço, na nuca, nas costas ou nos três.
Esperando.
Pegou mais um café. Já é o terceiro (é grátis mesmo). Sentou novamente, corrigiu a postura. Queimou a ponta da língua. Arqueou novamente a coluna, tomando a forma da cadeira. Subiu o olhar para o relógio. Aproximou o copo da boca e assoprou. Seguiu assoprando. O café esfriando.
Esperando.
Pensou que podia ter aproveitado melhor esse tempo. Umas horinhas poderiam fazer alguma diferença. Talvez pudesse ter adiantado aquele trabalho. Podia ter conversado com alguém interessante. Chegou à conclusão de que nada o impedia de conversar com alguém ali mesmo. Era o que pensava. Na prática percebeu que muita coisa o impedia de ter uma boa conversa. A pressa, o medo, a tendência a não falar nada interessante, a falta de intimidade, o distanciamento mínimo comum, o pensamento múltiplo comum, as idéias vagas, as vagas idéias, as idéias procurando vagas, sem espaço para estacionar em meio aos transtornos que ocupam as mentes. Desistiu após duas conversas sobre o clima, quatro sobre futebol, uma sobre violência e outras três sobre religião. Caminhou desoladamente, de volta para sua cadeira. Não que fosse sua, mas aquela onde ele estava antes, na qual devia ter sentado muita gente diferente. Tentou fazer um cálculo de quantas pessoas deviam passar ali por dia, dividir pelo número de cadeiras e talvez chegar a um número médio de pessoas por dia naquela cadeira. Podia fazer um livro só sobre aquela cadeira e os tantos personagens incomuns que passam por ali. Mas desistiu da idéia. Esparramou-se novamente na cadeira. E ficou ali.
Esperando.

18 de abril de 2007

Piada

Eu sou uma piada

Uns entendem, outros não entendem

Mas no final a maioria acaba rindo

E se eu me explicasse... perderia a graça

10 de abril de 2007

4 de abril de 2007

Mais perto do senhor

Ela vestiu sua melhor roupa, tirou do armário aquele perfume guardado para ocasiões especiais e ficou fazendo e desfazendo o cabelo até que ele ficasse impecável.

Saiu de casa meia hora antes do que de costume e caminhou pelas ruas vazias em direção à praça. As poucas almas vivas que encontrava estavam entre vivas e mortas, acordadas e desmaiadas, resquícios da noite anterior. Era assim toda manhã de domingo, especialmente na época da colheita do café, quando a população da cidade dobrava apenas com os trabalhadores temporários, nômades, a serviço de quem tivesse serviço a oferecer.

Como planejado, chegou a tempo de pegar o melhor lugar, na primeira fila, à margem do altar. Observou atentamente cada movimento do padre enquanto ele preparava-se para subir ao púlpito, estava esperando por este momento desde a semana anterior, mas não se arriscava a dirigir-lhe a palavra. Ela pensava que se ele ao menos a olhasse com atenção, ela nem precisaria falar nada.

Em pouco tempo começaram a chegar outros fiéis, alguns infiéis e outros que nem sabiam muito bem o que estavam fazendo ali. Entre todos, uma lhe chamou a atenção, ela nunca tinha visto aquela moça por ali. Não era muito bela fisicamente, tinha lá um ou outro detalhe a reparar, mas o que mais chamava a atenção era a roupa. Era uma roupa de sábado, parecia imprópria para a missa de domingo, uma saia alguns dedos acima do joelho e uma blusa de alça, com um leve decote, que deixava à mostra as linhas do pescoço adornadas com um belo par de colares, um em tons de madeira e o outro vermelho.

Logo ela deixou de reparar no pescoço e na moça dona do pescoço. Mas então quem reparou na moça foi o padre e, após reparar que ele havia reparado, ela voltou a reparar na moça. Analisou cada detalhe, cada leve defeito, cada pecado que ela havia de ter cometido. E reparava também no padre, nos seus olhares e seus sorrisos. Assemelhavam-se ao olhar e ao sorriso do último domingo, mas ela tinha certeza que se direcionavam ao quinto banco do lado esquerdo da igreja.

A situação foi lhe deixando ansiosa, não sabia como proceder diante de tal afronta. Ainda mais porque ela estava na primeira fileira, em meio a duas senhoras, no meio da cerimônia, em meio aos olhares e colares, pensando em um meio de cessar aqueles atos indecentes. Foi então que começaram uma oração e ela, sem outra opção, começou a rezar alto, mais fervorosamente do que qualquer pessoa já havia orado diante daquele altar. Por conta disso, os olhares de todos, inclusive os do padre, direcionaram-se a ela. Percebendo a situação, ela continuou, em alto e bom tom, a pronunciar todas as falas que cabiam aos que ficavam de frente para o altar, já sabia todas de memória.

Ao final da cerimônia, após cânticos entusiasmados e orações fervorosas, ela olhou para o padre e ele fez um gesto para que ela se aproximasse. Ela sentiu um frio na espinha, até o ar dentro dos seus pulmões sentiu-se intimidado e acabou ficando por ali mesmo enquanto ela caminhava em direção ao altar. Durante a breve caminhada, observou com um sorriso a moça dos colares retirando-se pela porta lateral.

Quando ela já estava perto o suficiente, ele disse:

— Já na minha segunda celebração não pude deixar de notar tua presença. Não há modo de não ficar admirado com tua devoção às orações e aos cânticos. Tens algum motivo especial a celebrar?

Ela deu mais um passo em direção a ele e respondeu:

— Tenho só um motivo, ficar mais perto do senhor.

3 de abril de 2007

Espera

A luz baixa, vinha pelos cantos, escorrendo, como se perdesse força ao se arrastar pelas paredes. Um casal, um grupo de amigos, um trio de amigas e ele sentado sozinho em uma mesa. Colocou o celular e a ficha de consumação em cima da mesa, lhe pareceu que o ambiente permitia estes pequenos descuidos.

Naquele momento iniciou-se uma espera, mas não daquelas esperas desesperadas e desesperadoras, que costumam estar acompanhadas de um trilha de suspense. Esta espera, especificamente, estava acompanhada por um jazz dos mais suaves. E ele pensou na espera, que era uma espera da qual já se sabia mais ou menos o que esperar, uma espera com o tempo a seu favor.

E antes que pudesse pensar no que dizia, como se não fosse ele que estivesse expressando, mas sim a idéia que houvesse escolhido a voz dele como meio para ir ao mundo, ele exclamou bem baixinho:

- Uma espera de esperança!

31 de março de 2007

Pouco espontânea

Estava visivelmente desconfortável, com a respiração travada, assim como o sorriso. Na impossibilidade de cobrir o rosto com as mãos parecia cobrir timidamente os dentes com os lábios. As articulações pareciam ter sido reduzidas apenas ao pescoço e à cintura, ainda que ambas tivessem seus movimentos semelhantes aos de engrenagens enferrujadas, indo aos trancos. Além disso, a expressão nos olhos era de quem estava prestes a despencar em um barranco. Mas então, aos trancos e barrancos, ele tirou a foto. E ela finalmente pôde sorrir.

Cheiro de chuva

Em 5 minutos tudo mudou
De laranja para cinza
E todo mundo reclama
O engarrafamento se forma
O dia acaba... mas não para mim

Eu, só o que eu quero é ficar na chuva
De braços abertos e olhos fechados
Sentir como se as gotas estivessem paradas
E eu me chocasse contra elas

Quero sentir esse movimento
Esse momento
E muitos outros
Pequenos potinhos de felicidade

Me concede o prazer desta dança?

23 de março de 2007

Uma impressão

Por alguns momentos tenho a impressão de que o artista que lida com imagens, desenhos e pinturas tem mais facilidade do que o que lida com as palavras, sentimentos, emoções e reações.

Até porque tenho a impressão de que a imagem você começa copiando para depois fazer seu próprio trabalho. Mas os sentimentos, reações e emoções, você deve primeiro vivê-los para depois ainda traduzí-los em palavras.

Mas no final acaba sendo tudo uma impressão.

22 de março de 2007

Muda

Como sempre, ele estava falando sobre as coisas do mundo que ninguém há de entender, muito menos ele mesmo:
- Não é de hoje, mas cada dia piora. Isso me preocupa. Está na televisão, na internet, na faculdade, no papo de boteco, na lotérica ali da esquina. Na televisão, há cada vez mais programas para que resolvam alguma coisa na sua vida, te dar dinheiro, um novo rosto, um novo carro, uma nova casa e até um novo amor. E as pessoas já não sonham mais em conseguir as coisas, pensam que alguém ou algo podia resolver lhes dar.
- Desculpa, não ouvi direito o que você falou.
- Outro problema. Ninguém ouve, ninguém dá bola, ninguém respeita, ninguém cuida de ninguém. Esses dias mesmo eu fui ao hospital e me negaram atendimento porque tinha que ter passado primeiro por um ambulatório que ficava mais longe de casa do que o hospital.
- Não precisa ficar nervoso.
- Claro que não preciso, eu posso simplesmente não me importar. Ou eu posso tentar fazer algo, sei lá, mesmo que seja pouco. Quando eu cheguei em casa, enviei uma sugestão de pauta aos jornais para que façam uma matéria explicativa sobre o funcionamento do hospital. Para que os desavisados dirijam-se ao ambulatório e não diretamente ao hospital.
- E saiu a matéria?
- Não sei. Eu não leio jornal.
- Então que diferença faz?
- Para mim? Nenhuma! Mas deve ter alguém que lê o jornal e que pode ficar doente algum dia e daí vai lembrar de ir ao ambulatório primeiro.
- Então você pode estar salvando uma vida?
- Indiretamente eu posso estar colaborando.
- Parabéns...
- Por que o sarcasmo?
- Você e essas suas idéias utópicas de mudar o mundo.
- Eu disse que talvez eu ajude alguém, não que mudaria o mundo.
- Mudar alguém, algo, o mundo.
- São coisas diferentes.
- Mas a idéia é sempre mudar.
- Para melhor.
- E muda?
- Se você mudar muda.
- Muda o que?
- Primeiro você tem que mudar.
- Mas o que em mim tem que mudar?
- O seu jeito de pensar.
- E depois o que muda?
- A muda.
- A muda?
- A muda muda. Vira árvore, dá flores e frutos.
E por alguns minutos, com um sorriso no rosto e um novo brilho nos olhos, ela ficou muda.

21 de março de 2007

Nosso espaço

A poesia nunca teve lugar

Não que ela não estivesse ali
Ela estava, mas não se encaixava
O espaço era pequeno
E ela sempre foi exagerada

Até que veio você
E com você veio o nós
E conosco o nosso amor
Que é nosso, não é só meu ou só seu
E, por isso, há espaço de sobra para a poesia

A poesia agora se encaixa
E o que era hipérbole
Virou eufemismo ...

20 de março de 2007

Nada em vão

Dias em vão
Dias que vão
E você nem sente
Nem vê passar
Esse dias vão
Nem as memórias ficam
E você nem lembra
Nem sabe o que fez
E de vão em vão
Se faz um buraco
O buraco é fundo
Mas não acabou-se o mundo

Eis que vem a salvação
Um dia especial
Com momentos inesquecíveis
Memoráveis, incomparáveis
Momentos que você sente
Que não quer deixar passar
Uma hora eles vão
Mas as memórias ficam
E depois você lembra
De tudo que fez
E de momento em momento
Chegamos à conclusão
De que nada é em vão