27 de dezembro de 2007

O barquinho

- Então, vamos simplificar. Você não gosta de mim e eu também não gosto de você.

- Mas, eu gosto de você...

Uma nova luz, um novo brilho, tomou conta dos olhos dele:

- Gosta?

- Gostava.

Depois de falar esta frase, ela deu as costas a ele. E foi como se o farol voltasse a luz para o continente. O barquinho naufragou.

Como que sem querer

O amor chega de fininho.

E, por mais que chegue em silêncio, desperta curiosidades.

Também acorda os medos, que têm o sono ainda mais leve, transtornados.

Superficial

Ficamos atados às belezas e aos prazeres da superfície.

Mas a culpa não é nossa. De onde se vê a beleza interior, é impossível sair por vontade própria e, uma vez que se é expulso, a vontade de estar ali equipara-se ao medo de ser expulso mais uma vez.

25 de dezembro de 2007

Criminoso

O mercado de trabalho continua executando crimes perfeitos.

Sequestra as almas e pede em troca, como forma de resgate, as forças do corpo.

E as vítimas só percebem tarde que de nada vale uma alma torturada, repleta de medos, somada a um corpo calejado, exausto.

18 de dezembro de 2007

Plantando pedras

Por toda a vida, plantou pedras. Quando havia uma flor no meio do caminho, arrancava e plantava mais uma pedra no lugar.

Algum tempo depois, quando as pedras brotaram, seu mundo ficou todo cinza. Ela, entristecida e só, nunca mais floresceu, virou pedra.

Baile de máscaras

Nenhum dos dois conseguia se envolver, desenvolver confiança, intimidade, cumplicidade; esses detalhes que sustentam um relacionamento. Sabiam que era coisa de uma noite, uma semana, com sorte, um mês.

Mas, estavam decididos a tentar, vestir as máscaras e ver até onde a mentira os levaria. E levou longe, até que a morte os separou.

17 de dezembro de 2007

Tulipas negras

Ouvia, via e sentia a tristeza alheia. A angústia lhe estufava o peito, o ar ficava pesado e os ombros recolhiam-se enquanto as mãos passavam pelo rosto suado.

E foi assim em todas as vezes que se deparou com as tulipas negras, desdentadas, bocas do desespero.

12 de dezembro de 2007

O golpe do século

- Preciso que você me conte como é que você fez para resolver aquele rolo da clonagem.
- E que rolo! Deu um trabalhão...
- Sério?
- Sério. Demorou meses até resolver tudo.
- Putz!
- Não me diga que também aconteceu com você?
- Aconteceu.
- Que lástima...
- Mas então, como foi que aconteceu?
- Foi assim, nós viajamos para São Paulo e um ano depois chegou a intimação para ele comparecer ao tribunal. Quando chegamos lá, havia um processo correndo e exigindo um monte de dinheiro.
- Mas e daí?
- Daí que na época não era um golpe conhecido. Foi um dos primeiros. Tivemos que chamar vários especialistas para provar que tinha sido clonado. Foi um sufoco. tivemos sorte de poder contar com o apoio dos maiores especialistas. E ainda mais sorte por terem encontrado o sujeito que foi obrigado a fazer o serviço. Ele entregou os culpados.
- Espero que a gente dê sorte.
- Agora é mais fácil. Já não é todo mundo que cai no papo destes golpistas. E, além disso, é bem mais fácil provar a clonagem.
- Tomara.
- Tem idéia de onde foi?
- Acho que sim. Fiz as contas e acho que clonaram o meu quando viajamos para o nordeste com escala no Rio.
- Aeroporto é um perigo. Tem que ficar atenta a cada fio de cabelo. Senão, depois, aquele safado tem um filho com alguma vagabundinha e vem falar que é o golpe do clone de novo!
As duas caíram em gargalhadas.

11 de dezembro de 2007

Metódico

Levava tudo à ponta do dedão do pé direito da letra.

Nunca nem fez questão de saber o que estava além da simples soma das letrinhas.

Morreu sem saber se ela disse sim ou não.

Meio cheio

Ele andava sempre com um copo na mão. Um copo enorme, laranja. Era impossível não notar o copo. Antes de sair de casa ele enchia o copo de água e ia bebendo durante as andanças.

Um dia qualquer, ele começou a marcar as distâncias pelo tanto de água que restava no copo. Um tempo depois, já sabia a distância em copos até os pontos mais importantes da cidade. E falava com uma convicção de não deixar dúvida: "Até o museu da meio copo", "Quase um copo até o calçadão", "Dois golinhos e estou no mercado".

Depois de algum tempo, um sujeito um tanto cético quanto às medidas o questionou:

- E, toda vez que você vai aos lugares dá a mesma distância em copos?

- Não. Varia.

- Varia com o que?

- O clima.

- Então a medida não dá certo?

- Dá sim, certinho. No calor sempre parece que é mais longe.

4 de dezembro de 2007

3 de dezembro de 2007

Espetáculo

A noite de estréia é um espetáculo. Mágico, incomparável.

As noites seguintes já não têm o mesmo encanto. Os sorrisos já não são mais os mesmos.

Algum tempo depois, ela junta as tralhas e toma outros rumos.

Paixão itinerante.

1 de dezembro de 2007

Embriagado

Todas as coisas e idéias tendiam para a esquerda
Depois, inclinaram-se um bom tanto para a direita

Então rolaram para o centro e por ali ficaram
No equilíbrio frágil de uma mesa de boteco

O álcool e a política têm efeitos semelhantes