14 de dezembro de 2013

Polida

Em meio à profunda angústia, abriu a torneira e permaneceu estática, observando o fluxo. Após alguns instantes, pegou a esponja, o detergente e lavou a louça, com todo cuidado, deixando correr água em abundância.

Aquela era sua fuga. Pensava que ninguém faria uma loucura depois de lavar a louça: pareceria estúpida quando encontrassem o corpo.

28 de setembro de 2013

Fluxo

O rio das memórias
percorre os vales do tempo

mas desemboca, inevitável

nos mares do esquecimento

18 de agosto de 2013

Promissória

Toda promessa
tem outra face

- tal qual moeda
de troca

Toda promessa
carrega nas costas

uma cobrança compulsória

17 de agosto de 2013

Ímpeto

Aquela paixão
- todos diziam
era atraso de vida


o que ninguém sabia

é que não tenho pressa







2013 - Selecionada no 4º Prêmio TOC140 de Poesia no Twitter - Festa Literária Internacional de Pernambuco - Olinda - PE;

11 de agosto de 2013

Redentor

Capturado pelos soldados, pagou com a vida por pecados alheios

Depois de três dias, não havia qualquer sinal do corpo - nenhuma notícia

A família continua buscando respostas







* Este texto foi rabiscado no caderninho quando eu ainda estava morando no Rio. Ao passar a limpo as anotações, fiquei até confuso, pois foi impossível não relacioná-lo ao caso mais recente, do pedreiro Amarildo, "desaparecido" pelos soldados da PM na Rochinha.

6 de agosto de 2013

Veredas

Caminhava a passos vagos
por noites esquecidas

e para marcar a trilha
- e retornar durante o dia

deixava pra trás um rastro

de migalhas do passado

24 de julho de 2013

Tributos

Guarde contigo
entre os dedos

bem contido
- como segredo

o ouro de que nos priva


Na barca de Caronte

pagará
- por teus pecados

o excesso de bagagem

15 de julho de 2013

Viajante

Trago nas mãos um mapa
de cento e sete cidades

- fundidas em uma metrópole


Na mochila, coleções
de tantos rostos e nomes

- que nunca, nunca se completam


No bolso de trás, um livro
com todas as histórias

- que ninguém vai escrever


E, por fim, embrulhadas em jornal, conservas
de momentos preciosos

- para saciar a tristeza
nas noites mais longas do inverno

6 de julho de 2013

O último choro

O brilho dos teus olhos

tal gota de orvalho
que escorre

- pelos veios da folha

e atira-se ao chão

28 de abril de 2013

23 de abril de 2013

Apreensivo

Envolto num casulo

receio se seda
- ou teia

Interrogado,
respondo:


Não temo nada


salvo

quando estou ao teu lado

31 de março de 2013

Frágil

Não era um sorriso amarelo
- tampouco branco

tinha cor de porcelana antiga

e era tímido
- contido

como se fosse frágil

25 de março de 2013

23 de março de 2013

Geometria do discurso

Nos debates cotidianos
eis o que tenho notado:

os círculos
[sociais]
estão cada vez mais quadrados







Dica de leitura:
Roland Barthes - Aula

22 de março de 2013

Sincronia

Em ritmos distintos
caminhávamos nos afastando

Entretanto, após algum tempo
tendemos a nos encontrar

- nas horas exatas

em momentos marcados

tal qual ponteiros
tiquetaqueando
no mesmo relógio

21 de março de 2013

18 de março de 2013

Decomposto

Produzia uma prosa ácida
- corrosiva


E com o tempo
ao dissolver-se

não restariam quaisquer traços

14 de março de 2013

Carrasco de sandices

Mantenho centenas encarceradas
em espaço diminuto

umas mortas há tempos
e outras que ainda gritam

muitas desesperadas
algumas, esperançosas

de um dia sair do bloco

do caderno de anotações
- calabouço de inspirações

13 de março de 2013

Ribeirinho

Da porta de seu casebre
protestava, ainda perplexo:

E essa gente estudiosa
- com diploma e tudo mais

vem me dizer agora
sem nem vergonha na cara

que há um nível tolerável

de merda na minha água

10 de março de 2013

Tão perto, tão longe

- Aquele copo estava meio suspeito. Eu tive um mau pressentimento, mas estávamos em uma festa, entre amigos, o que podia dar errado?

Aqueles olhos ariscos fitaram-me pela primeira vez após meses

- Tudo... deu tudo errado. Aquele nojento! Desgraçado...

As lágrimas começaram a jorrar em abundância. Levantei-me para abraçá-la e, de imediato, fui repelido por um gesto brusco. Ela recolheu-se a um canto do sofá. O silêncio da sala tornou-se denso. O espaço entre nós, um deserto.

28 de fevereiro de 2013

Obsoleto

Os frequentes atrasos e esquecimentos do antigo capelão já vinham provocando comentários desdenhosos pelas ruas e praças, mas, ainda assim, todos queriam proteger aquele símbolo secular.

Apesar dos protestos por toda a cidade, trocaram o velho sino de bronze por um equipamento eletrônico, programado para soar nas horas exatas, ditando o ritmo dos fiéis e do comércio. A centenária peça de bronze, no entanto, permaneceu na torre, pois, além da dificuldade para removê-la e de toda a história que representava, ela era um atrativo para os turistas que esporadicamente apareciam por lá.

De início, o responsável por manter a tradição, que não se pronunciou em qualquer das reuniões sobre a substituição, parecia estar aliviado do fardo de sua função. Mas, naquele domingo, durante a missa, começaram as badaladas incessantes.

Ante o presságio de uma tragédia, interrompemos a celebração e subimos pela escadaria em espiral, enquanto ainda ecoavam pela torre aqueles sons estridentes, agora mais esparsos. Ao chegarmos ao topo, desabamos em lamentos após notar, entre as cordas do badalo, os pés suspensos.

27 de fevereiro de 2013

Provento

Ele virou palhaço

mas era pouco ambicioso

inflava, orgulhoso

ao conquistar um riso fácil

25 de fevereiro de 2013

Ressaca

Nadava em esquecimento

mas submergia
- de tempos em tempos

nas águas turvas
- de memórias difusas

gerando redemoinhos
- em sonhos intranquilos

19 de fevereiro de 2013

Apreendidos

São pássaros da mesma espécie
- quase idênticos

diferenciam-se apenas
por um ponto bem específico:


voam livres as poesias

enquanto cantam
- em gaiolas

os poemas

1 de fevereiro de 2013

Retrato falado

Era assustadoramente comum: não havia qualquer traço marcante; uma cicatriz que fosse, olhos faiscantes ou muito opacos, um tique, trejeito - nem ao menos um tom de voz ou respiração brusca que levantassem suspeitas

Havia apenas uma maldade incerta, dessas que se encontra em qualquer um

30 de janeiro de 2013

25 de janeiro de 2013

A nação da triste figura

E que não se espere
nada além da utopia

de um povo quixotesco

que surgiu heroicamente

bradando contra um rio de águas calmas

20 de janeiro de 2013

Dissimulado

O tempo segue

mas quando olho pra trás

por um instante

ele para
- disfarça







* trecho de minha autoria da poesia coletiva resultante do encontro anual do pessoal da comunidade concursos literários.

17 de janeiro de 2013

14 de janeiro de 2013

O grande domador

O dono do circo, ao perceber que os animais andavam meio desanimados, por terem sido da floresta retirados – e porque agora não conseguiam mais perceber e coletar os frutos de seus esforços, sabiamente repetia, de jaula em jaula, noite e dia, o lema que assim dizia:

– O trabalho dignifica o urso!

– O trabalho dignifica o leão!

– O trabalho dignifica o primata!

Em pouco tempo, os animais já haviam assimilado o ditado e, na porta do circo, os candidatos formavam fila: queriam trocar a insegurança da selva por um emprego fixo, uma jaula de janelas gradeadas e, vez ou outra, um bom prato de comida.

9 de janeiro de 2013

8 de janeiro de 2013

Réquiem para uma tia distante

Tia Isabel era uma cabecinha gorda sob um chapéu demasiado pequeno. Nas raras reuniões de família, falava pouco, sentava longe e nunca saía na primeira fila das fotos - nunca foi protagonista, nem quis ser.

Quando ela desapareceu, ninguém conseguiu encontrar uma boa foto de rosto para entregar à polícia e espalhar pelas redes sociais e e-mails dos amigos e conhecidos.

O corpo só foi encontrado depois de dias e, devido ao estado em que estava, fez-se o velório de caixão fechado. Havia apenas uma janelinha, através da qual se via o rosto - desfocado por um véu; bem como eu me lembrava.

6 de janeiro de 2013

Nenhuma luz

Inspirado por Huxley, Orwell e Bradbury, queria criar em seus escritos uma sociedade distópica.

Encontrou, no entanto, uma grande dificuldade: não conseguia imaginar, por mais que se esforçasse, algo muito pior do que a presente realidade.

5 de janeiro de 2013

Desapego

A floreira que emoldura
a mirada dos andarilhos

a fruta que amadurece
pra alimentar os passarinhos


poesia é semente que se planta

sem ter pretensão de colher

4 de janeiro de 2013

3 de janeiro de 2013

Intragável

Ele abriu o novo tablete e colocou sobre os restos da manteiga velha que resistiam no fundo da manteigueira, já arados pela faca de serra. Sabe-se lá há quanto tempo vinha fazendo isso.

Ela tentou comer, mas deixou a torrada no prato e o afastou sutilmente em direção ao centro da mesa. Tentou distrair-se lendo o jornal, mas ao tentar virar as páginas sentia como se estivesse com as pontas dos dedos oleosas, rançosas.

Quando ele levantou, já atrasado, e tentou beijá-la, o afastamento brusco, com o rosto virado para o lado, foi inevitável. O casamento acabou, de fato, naquele instante.

2 de janeiro de 2013

Sitiada

As primeiras folhas secas
crepitavam no fogo baixo

A fumaça, escura e densa
tomava forma de presságios

- o inverno encerrou a trégua -

E as portas tremulam
- reverberam irritadiças
pela iminente violência

Em breve marchará
- o exército do desespero
sobre as ruínas da consciência







Menção honrosa no 4º Prêmio Literário Sérgio Farina - Centro Cultural José Pedro Boéssio - São Leopoldo - RS