7 de dezembro de 2010

Minimalismo

Papelão sobre tela
jornal sobre calçada

Muito pouco
sobre quase nada

A dura arte de sobreviver







2012 - Selecionada no III Concurso de Poesias Revista Literária - Editora Scortecci e Revista Literária - Brasília - DF;
2011 - 7º lugar no II Concurso TOC140 de Poesia no Twitter - VII Festa Literária Internacional de Pernambuco - Olinda - PE;

6 de dezembro de 2010

Ainda hoje

De dentro dum ônibus!

Juro pela minha mãezinha - sinal da cruz - que Deus a tenha.

É uma coisa miúda, vai no bolso da camisa, dá até impressão de que tem que falar e ouvir um de cada vez, mas o moço da loja me garantiu...

Cê tá me ouvindo direitinho, né?

Oi?

Ah bom...

3 de dezembro de 2010

2 de dezembro de 2010

Autocrítica III

Poesia de saguão de entrada
- no hall do condomínio -

reprodução fiel
perfeitamente traçada

o plágio descarado

de uma obra prima

1 de dezembro de 2010

30 de novembro de 2010

29 de novembro de 2010

Reality show

No centro do auditório, a justiça permanece sentada e vendada, enquanto o apresentador aponta para um político corrupto, depois para um ladrão de galinha e pergunta:

- Você solta esse para prender este aqui?

Diante de tantos olhos, mas sem qualquer vergonha ou hesitação, ela grita:

- Siiim!

26 de novembro de 2010

Maria fumaça

As engrenagens
um pouco gastas
em eterno vai e volta
atritam-se - barulhentas

Enquanto isso
sobre as chamas
a válvula dá voz aguda
aos vapores - insistentes

Na estação da memória

entre a máquina de lavar
e a panela de pressão

embarco nesta viagem
às manhãs de domingo
na casa de Maria
minha mãe - locomotiva

25 de novembro de 2010

Chuva de verão

Quando o calor
tornou-se constante

e as escassas fontes
de água doce
começaram a secar

caminhar pelas ruas
tornou-se um tanto perigoso

lá do alto
choviam corpos
desesperados

Cantando na chuva

 Naquela época, não havia quem não o reconhecesse quando caminhava pelo centro. Alguns até ensaiavam alguns passos e o seguiam pela rua, na expectativa de que ele cantasse - ao menos algum refrão - e exibisse toda sua habilidade no sapateado. Ainda que um pouco contrariado, e um bom tanto sem graça, ele sucumbia aos desejos dos fãs e acabava por apresentar alguns passos e um trechinho de alguma das canções dos sucessos de bilheteria.
Paolo Bellini, apesar do nome estrangeiro, era uma estrela nacional, ainda não era das maiores, mas despontava como um dos atores e cantores com maior potencial de futuro. Os críticos diziam que seria o Gene Kelly tupiniqueim; que logo estaria dando as caras - e as cartas - em Hollywood, enquanto os colegas o admiravam pela capacidade de criação, direção e atuação nos grandes musicais.
Contudo, apesar do otimismo, tão logo ele despontou, os musicais começaram a perder força. Ainda que os produtores insistissem, tentando inserir elementos da cultura nacional e da comédia, as bilheterias caíram vertiginosamente após o “efeito novidade”: todos quiseram conhecer o cinema falado e cantado, mas muitos, depois de conhecer, preferiam ouvir rádio, que era de graça. Com a queda nos rendimentos, e o consequente corte de gastos, a qualidade das produções também caiu; Apesar de continuar atuando, por não poder se dar ao luxo de recusar os minguados salários, ele já não tinha mais tanto espaço - nem tantas expectativas. Geralmente, quando escalado, fazia papéis secundários, quase figurantes, entre recepcionistas de motel e turistas abobalhados.
Com a chegada da televisão e das novas influências no cinema, Paolo perdeu definitivamente o pouco espaço que tinha. Ainda marcado por suas atuações nos musicais, seguidas por pontas estereotipadas em comédias de mau gosto, acabou sendo visto como um bom cantor, mas que não tinha talento algum para a atuação. Por este rótulo, ingratamente anexado a ele, acabou esquecido tanto pelo cinema quanto pelos canais de televisão, que haviam contratado boa parte dos seus antigos colegas.
Depois de tantas decepções, com o esvaziamento de seu potencial - consumido pelo álcool e pelo cigarro, foi uma questão de tempo até que ele arruinasse qualquer chance de recuperação da carreira. Por um punhado de trocados, cantava em bares, casas noturnas e ambientes pouco familiares. Além de ganhar pouco, ainda gastava mais da metade antes mesmo de cambalear de volta para o quartinho imundo em que se largava; A essa época, morava na Gomes Freire, em um puxadinho nos fundos de uma pensão para solteiros.
O passar dos anos fez questão de surrar-lhe a voz e as juntas. Após algumas décadas, ele mal podia reconhecer-se nos cartazes dos tempos áureos, que guardava bem dobrados, com todo cuidado, em uma velha maleta de couro, debaixo da cama do quartinho da pensão - onde já morava de favor há mais de dez anos. Naquele tempo, usava barba longa e bigode, saia à rua apenas para o essencial e tinha pavor de citar o próprio nome - sentia-se extremamente mal, irritado e injustiçado, quando alguém o reconhecia, por rosto ou por nome, e questionava: “Mas você não era ator de cinema?”.
Nos bares da região, muitos dos garçons o conheciam - dos tempos de cantor boêmio - e, quando podiam, tratavam de alimentá-lo. No entanto, quando os clientes pediam, não demoravam a afastá-lo. Nunca chegou reclamar ou a agredir alguém, talvez nem tivesse condições físicas para isso, mas causava um mal estar e, então, os garçons preferiam retirá-lo, até para evitar que se criasse confusão. Diante das expulsões, ele costumava abaixar a cabeça e dirigir-se ao abrigo do velho quartinho da pensão.
Uma tarde, no entanto, ele apareceu no botequim muito sujo, esfarrapado, parecia ter passado dias na rua, e começou a cantarolar. Os clientes logo reclamaram e, quando o Arlindo, garçom do botequim, sugeriu que ele se retirasse, a reação foi diferente do esperado. Ao invés de acatar a ordem de retirada, ele puxou-o pelas mãos e arriscou alguns passos. Visivelmente acanhado, Arlindo travou as pernas no chão e apenas observou o sapatear destrambelhado, ainda que bem ritmado, daquele velho conhecido de vista, da noite. Incomodado com a falta de ritmo e com o acanhamento do garçom, ele corrigiu a postura - o máximo que podia - e contraiu o punhado de rugas que lhe cobria a face, expressando profunda irritação; Entre algumas palavras mais rudes, disse que não podia continuar daquela maneira, com parceiros sem talento, e saiu do bar, apressado.
Ao chegar ao largo da catedral, ainda irritado, ouviu os acordes e batuques de alguns músicos que costumavam tocar por ali, quase todo dia, entre o horário do almoço e o final da tarde. Em sua deixa, ele começou a acompanhar a música, cantarolando e sapateando, girando em torno de si mesmo. Ao olhar em volta, demonstrou novamente aquela profunda irritação e começou a fazer gestos bruscos, dando ordens para que todos seguissem os passos e fizessem parte do coro. Tentou mais uma vez, do início, sempre olhando para os que o cercavam e balbuciando ora palavras de ordem, ora de incentivo.
Um casal de estudantes, Vinícius e Patrícia, entusiasmados com a intervenção, começaram a participar: cantarolavam junto e dançavam conforme as instruções daquele senhor esfarrapado. Logo, Paulo, um garoto recém-saído da escola começou a captar a movimentação na câmera do celular e alguns de seus colegas começaram a seguir os passos indicados. Em cinco minutos, havia uma dezena de figurantes sob o comando daquele inusitado coreógrafo; Até mesmo a banda resolveu seguir as instruções. Aquela trupe aleatória, após dez minutos de ensaios e ajustes, atraiu dezenas de curiosos e executou um breve número musical, com uma só canção.
No entanto, ao fim desta apresentação, logo depois dos aplausos, a trupe acabou separando-se, pelos mesmos motivos que as trupes sempre se separam: divergências em relação aos cachês, incompatibilidade de horários, brigas internas, etc. Os dançarinos, em horário de almoço, tratavam aquela trupe como uma diversão, no máximo um projeto paralelo de um dia aleatório, algo para se contar aos amigos na mesa de bar. Inevitavelmente, acabaram desertando e seguindo suas vidas; Ele não se preocupou, arranjaria facilmente dançarinos melhores.
O grande problema foi com a banda. Alguns dos curiosos, ao final da apresentação, dirigiram-se ao protagonista, diretor e coreógrafo, para dar-lhe alguns trocados; Ele, no entanto, recusava-se a recebê-los e ainda respondia, com empáfia, que não trabalhava por migalha. Diante da recusa, os integrantes da banda viram escapar-lhes - das mãos e chapéus - diversas moedas, algumas notas de dois, pouquíssimas de cinco e até mesmo uma rara nota de dez.
Não demorou até que o palco se esvaziasse, e foi então que os músicos, sentindo-se injustiçados, aproveitaram para rediscutir as cláusulas do contrato. Carregaram aquele senhor, conhecido de rua, até o outro lado do largo, nos fundos da velha catedral, e o surraram, entre gritos de “velho desgraçado”, “burro” e outros termos menos apropriados. Nas pausas entre chutes, ele mal conseguia respirar, mas quando falou, implorou desesperado, pedindo por um dublê. Os músicos, no papel de juízes e carrascos, aplicaram a justiça da rua; E o deixaram por ali. Alguns sentiram um pouco de dó, principalmente pelas condições do sujeito que massacraram, mas não podiam se deixar levar por um sujeito qualquer, que recusou, em nome deles, uma noite em camas quentes - talvez até acompanhados.
No dia seguinte, envolvido em lençóis de algodão, com as feridas já limpas, mas muito doloridas e completamente roxas, ele tentou falar com Beatriz, a enfermeira que atendia o paciente ao lado, não conseguiu e urrou de dor, por conta do maxilar deslocado. Conformou-se com a idéia de que ficaria ali por dias, tomando sopa de canudinho, sem saber como chegara nem quando partiria. Passou a observar os outros pacientes e a bolar coreografias de acordo com os aparelhos e limitações de cada um. Ao final de três semanas, quando já conseguia falar e tinha dois dos três atos bem planejados, começou a conversar com os que o cercavam, dando instruções do que cada um devia fazer.
De início, Beatriz achou aquilo tudo muito inusitado, engraçado, mas começou a preocupar-se na época em que se iniciaram os ensaios. Alguns dos pacientes, dos poucos que seguiram as direções, tiveram considerável piora em suas condições clínicas. Por esses agravos, acabaram, em um primeiro momento, mudando ele de ala. Contudo, depois de repetir-se a situação com alguns pacientes da segunda ala, tiveram certeza de qual era o foco daqueles problemas e, para pôr um fim à situação, o isolaram.
Alguns dias depois, devido ao alto custo de mantê-lo sozinho em um apartamento, ele acabou recebendo alta. Antes de sair, Beatriz, sabendo que ele ainda não estava exatamente curado, questionou-lhe se havia alguém para avisar, para que viesse buscá-lo, mas ele não soube responder. Depois, perguntou como ele voltaria para casa, mas ele já estava saltitando para fora, acostumado que estava após dois meses com a muleta. A enfermeira, apesar de sentir-se comovida, retornou a seus afazeres e logo esqueceu aquele sujeito arrebentado, que conhecia pela ficha médica e por uma ou outra agulhada no braço.
Ele chegou à praça principal pouco depois do início da chuva. Após a longa caminhada, sentia dores por todo o corpo, principalmente nos braços. Todavia, sendo uma estrela, não se deixaria abater por estes pequenos incômodos. Começou a arriscar alguns passos, com a muleta, enquanto tentava cantar; Não demorou até que ele se desequilibrasse. No meio da praça vazia, caído sobre uma das pernas, com os braços estatelados, um para cada lado, e a orelha esquerda mergulhada em uma fina lâmina de água, só lhe restava tentar cantar, apesar de seu inglês pouco lapidado, entre pausas de profundo lamento e dor:
- I´m singing in the rain...

24 de novembro de 2010

A cada um seu fardo

O patrão precisava de alguém que estivesse disposto a enfiar-se naquele macacão felpudo, colocar aquela peruca com forro de espuma e que, tal qual uma costela embrulhada em celofane, permanecesse ali, na frente da loja, cozinhando por várias horas. Demoraram a encontrar um corajoso - ou louco - e, em cima da hora, sem outra opção, o primeiro candidato foi logo efetivado.

Ele, que só estava ali porque também não tinha outra opção, chegou as oito e meia e desde as nove da manhã estava fantasiado, balançando uma placa com o novo slogan e observando as pessoas passarem indiferentes. Uma ou outra criança animava-se ao avistá-lo, mas todas mantinham-se de mãos dadas com as mães - nenhuma criou coragem para largá-las e aproximar-se um pouco mais. Mas também, com aquele rosto vermelho de ressaca, coberto de rugas, por onde escorriam rios de suor, e o olhar desesperado, apontado para os carros passando na rua e, vez em quando, para o relógio-termômetro da praça, não inspirava lá muita confiança. Além disso, aquele corpo todo, muito magro, tremia todo, incontrolável.

Às três da tarde, parou uma hora para o almoço, ali mesmo, nos fundos da loja, onde recebeu uma quentinha com arroz feijão e mistura. O moço até perguntou se ele queria salada, mas não fazia questão não. Comeu pouco, menos da metade, e largou a quentinha aberta, no canto da escada, onde sabia que viria comer um vira-lata que espreitava. Chamou de volta o moço que cuidava das coisas por ali e pediu um adiantamento, com a desculpa de aproveitar o resto da pausa para resolver um assunto ali na vizinhança. Aquele rapaz bem apessoado, de camisa, calça e sapato - já com a gravata um pouco frouxa, tinha cara de cansado, olheiras fundas e suava bastante. Após procurar um pouco na carteira, tirou dali uma nota amassada e resolveu logo o problema do palhaço.

Com aqueles dez reais no bolso, na frente da loja, ele reparou novamente no relógio-termômetro, fez as contas, com certa dificuldade, e concluiu que dava tempo. Partiu para a esquerda, cruzou a avenida, margeou a praça equilibrando-se sobre o meio-fio - um de seus passatempos prediletos - e foi dar com os cotovelos no balcão verde-claro do boteco do Seu Coisinho, que era o nome que ele dava para todos os anônimos donos de bares. Esse Seu Coisinho, como todos os outros, tinha bigode, mas era mais gordo que a média e usava uma camisa azul sobre uma camiseta branca. Naquele muquifo dois por três, o calor era tanto que o suor já manchava a camisa azul, deixando-a com duas marcas azul marinho sob os braços.

Algumas doses depois, retornou à loja e já era outro sujeito, já não tremia mais a mão. O vermelho do rosto abria espaço para um sorriso desalinhado e, além de segurar a placa, agora ele dançava. Estava tão empolgado, ainda mais vestido de palhaço, que resolveu animar a platéia. Dirigia-se aos pedestres, cantando e contando piada, tropeçava nas próprias pernas e cambaleava, perdia a peruca, ao tentar pegá-la derrubava a placa e acabava, por fim, lutando para pegar as duas e permanecer em pé.

Seria um perfeito Carlitos, não fosse o cheiro de caninha e os gestos bruscos, desmedidos e ameaçadores. As mães, assustadas, atravessavam a rua falando para as crianças não olharem. Os pedestres passavam com presa, tentando evitar que fossem abordados, e quando não conseguiam, chegavam até a empurrá-lo, antes que ele continuasse borrifar saliva para todos os lados enquanto falava, quase gritando.

Os dois seguranças, também cansados, embrulhados em ternos escuros e suando a bicas, não demoraram a perceber a confusão se formando, mas só tomaram uma atitude quando o patrão ordenou ao moço, pelo rádio, que cuidasse daquilo também - e bem rápido. Mesmo sem ser visto pelo vidro escuro, aquele senhor com nó duplo na gravata, ainda engomada, conseguia ver tudo lá de sua sala. Sem outra opção, o moço chamou os seguranças, que pegaram o palhaço pelos braços.

Ao saber que estava dispensado, ele subitamente parou de sorrir, fez as vezes de arrependido, triste, e pediu para que o soltassem. Todavia, logo que afrouxaram-lhe as amarras, zarpou a sapatear, cantarolando novamente.

Enquanto os seguranças andavam atrás dele, as crianças e mães permaneciam estáticas, em um fino equilíbrio, enquanto os primeiros tentavam aproximar-se, elas só queriam distância. Após dar uma volta por toda a loja, com o moço tentando convencê-lo a devolver a fantasia e partir, dizendo até que receberia todo o valor combinado, ele resolveu equilibrar-se novamente no meio-fio e desafiou os seguranças, seus perseguidores, a arriscarem-se na travessia.

As crianças riam da situação e as mães, no fim de tarde, já um tanto cansadas, castigadas pelo sol forte e pelas tarefas diárias, deixavam-nas deslizar pelas mãos suadas para aproveitar o pequeno espetáculo. Os seguranças, no entanto, sentindo-se ridicularizados, após serem avisados pelo rádio que se não dessem conta desse palhaço, podiam ir embora junto com ele, perderam a paciência e, sem ver outra alternativa, tentaram agarrá-lo em um bote rápido.

Foi o balanço da corda bamba, e as mãos suadas deslizaram pela fantasia, sem conseguir segurá-la, e o palhaço cambaleou, girou os braços para trás e, por fim, pousou na pista. O motorista do ônibus, apressado e estressado, por ter que fazer o trabalho dele e do cobrador ao mesmo tempo, embrulhado em seu uniforme, trancado naquela lata com dezenas de pessoas, também suava muito, e, bem na hora, para azar do palhaço, separava um troco do maço.

22 de novembro de 2010

Negação

Tentando conter, sem sucesso, a ansiedade - como se a apertasse contra o peito com as duas mãos, ela comentava:

- Esses moleque tão só brincando, pregando peça, vão se espocar de rir quando ele levantar

A cabeça do menino, carregado com pressa ladeira abaixo, balançava em negação

19 de novembro de 2010

Para poucos

Já era noite e a lua sorria, ainda que meio amarelada e entrecortada por algumas nuvens de chuva. Uma ou outra estrela despontavam naquele céu encoberto - de vez em quando era avião, mas a gente percebia logo a diferença. Entre as outras luzes por ali, só os vagalumes e o nosso lampiãozinho, desses de pilha mesmo, já que eu morro de medo de mexer com aqueles a gás.

Com a maré baixando, o mar afastava-se cada vez mais do cantinho onde nos assentamos, perto do coqueiro solitário, que era para ficar mais fácil de achar a trilha para o camping na hora que desse vontade de dormir. Ficamos ali sei lá quanto tempo, bem quietos, só observando o mar, ouvindo as ondas quebrando cada vez mais longe e os grilos cantando cada vez mais baixo. Vez ou outra, um siri deparava-se conosco e, um tanto assustado, como bichos ariscos que são, saia correndo de volta pra o lado de onde tinha vindo.

De repente, ela levantou-se para dizer que precisava fazer xixi. Eu percebi logo que ela estava em dúvida: devia fazer no mar ou percorrer toda a trilha na ida e na volta? Aí, para incentivar, eu falei para fazer por ali mesmo, era só pegar o lampião e andar em frente até achar a água. Um pouco constrangida - mas em parte aliviada - ela acatou a sugestão, pegou o lampião, o levantou acima da cabeça e seguiu em direção ao mar.

E foi naquele momento, tão ao acaso, assim que ela distanciou-se, que o espetáculo começou. Naquela praia vazia e escura, enquanto ziguezagueava para desviar dos siris curiosos e das águas-vivas abandonadas pelo mar, o único foco de luz estava irradiando dela e formava a sua volta, na areia, uma circunferência perfeita. Para mim, ela era uma estrela, em um número impecável de sapateado, seguida de perto por um holofote que vinha lá do alto, não sei de onde; Talvez fosse da lua, que, naquela hora, sem conseguir conter-se, sorria abertamente.

18 de novembro de 2010

O cafajeste

Com o tédio beirando os limites da sanidade, ela olhava para cima, desesperada, com o rosto todo contraído. Ao lado, na mesa, a mãe continua a conversar com uma amiga. Ela tentou armar uma birra, mas pelo olhar da mãe, aquele de castigos passados, desistiu logo. Vencida antes mesmo da batalha, decidiu prestar atenção no que falava aquela moça que estava do outro lado da mesa:

- Era sempre "minha princesa", "querida", "meu amor" - fez uma breve pausa para passar o lenço na ponta do nariz - Ele só não queria trocar os nomes!

Nesse instante a garota ficou intrigada com a situação e passou a prestar atenção na história. Permaneceu em silêncio durante o resto do desabafo - incluindo as sessões de descarrego e consolo.

No trajeto até o apartamento, ela permaneceu quieta - a mãe até chegou a ficar preocupada, mas depois achou que era sono. Ao chegar, foi direto ao quarto do casal, onde encontrou o pai já de pijama, deitado na cama e lendo um livro. Muito séria, ela disse:

- Oi, pai.

- Oi, minha princesinha!

Ela abaixou a cabeça, emburrada, e saiu do quarto resmungando:

- Cafajeste...

17 de novembro de 2010

Compasso

Enquanto cruzo a cidade a caminho de casa, ele me segue, sorrateiro - quando me dou conta, já está ali

Eu até que gosto da companhia e, se acabo me apressando, trato de estalar os dedos, bater palma ou assobiar, tentando atraí-lo de volta

Nessa cidade de tantos ritmos, este é o que me segue - e, bom, tenho que admitir: é também o que eu tento acompanhar

16 de novembro de 2010

Fobia

Para ele, eram iguais aranhas: ao menor descuido, estaria preso em suas teias e eles avançariam sobre seu corpo, por caminhos sinuosos, despejando o veneno da imoralidade - tal qual o pastor explicou.

Ao avistar um suspeito - ou um grupo deles, forçava a vista, pondo foco no perigo e tratava de juntar a arma que fosse - capacete, pedaço de pau ou barra de ferro, o que estivesse mais perto, para surpreendê-los em pancadas. Em último caso, sem qualquer arma ao alcance, pisava e dava chutes, perseguindo-os pelos cantos da parede, decidido a esmigalhá-los e deixá-los ao chão, quase inertes, não fosse pelos espasmos das pernas e braços.

Antes de partir, escarrava no pré-defunto:

- Bicha de merda!







http://www.naohomofobia.com.br

11 de novembro de 2010

Ninho de Chupins

Após adentrar a sala, girou a chave da porta quatro vezes e repetiu para si mesma:

- Precaução nunca é demais!

Logo depois de conferir as janelas de todos os cômodos daquela enorme casa vazia, erguida pela própria família, em área hoje cobiçada pela especulação imobiliária, ela programou a televisão para desligar em meia hora, apagou a luz e deitou-se.

Antes de fechar os olhos, apalpou a cabeceira para pegar o aparelho celular, esperançosa de encontrar por ali uma chamada não atendida ou mensagem recebida - nunca tinha nada, nem sinal de nenhum dos filhos. Então, ela encolheu-se num canto estreito da velha cama de casal, abraçando os dois joelhos e, por fim, despediu-se mais uma vez da casa - certa de que, um dia, cairiam juntas.

10 de novembro de 2010

Literófila

Carregada pela insistência

no bar ou na balada

folheava pretendentes intragáveis


Nunca havia entendido

por que é que trocavam aquilo

pelas páginas de um bom livro

9 de novembro de 2010

Condecorados

Após as duras batalhas
do cotidiano

os veteranos reúnem-se
nos bancos da praça


Entre os cerimoniais
e as partidas de dominó

exibem orgulhosos
profundas cicatrizes

medalhas de honra ao mérito

8 de novembro de 2010

Vitória-régia

Tal qual a nata

que era como se julgava

ela não se misturava


Com ares um tanto blasé

apenas flutuava, pomposa

sentindo-se a dona do lago

5 de novembro de 2010

Culatra

Ao chegar em casa naquela noite fria, ainda mais tarde que de costume, já abriu a porta reclamando:

- Quantas vezes vou ter que falar para não deixar o gás ligado?

Logo que entrou no pequeno quarto, de janelas bem fechadas, as palavras voltaram-lhe pela boca, com toda a força, arranhando-lhe a garganta

3 de novembro de 2010

1 de novembro de 2010

A porta aberta

Já era a terceira vez naquela mesma semana que eu ia até o 702 para arrumar a televisão do seu Alício. E era sempre a mesma coisa: eu chegava, batia à porta, só por educação, porque sabia que ficava aberta, o velho gritava lá de dentro para entrar e, só então, eu entrava, pedindo licença, para dar de cara com a sala-cozinha vazia, com a televisão no canto da janela e com os cabos da antena novamente embaralhados.

Ao notar a nova confusão, perguntei, em bom tom, para que fosse ouvido do quarto:

- Seu Alício, o senhor andou mexendo aqui de novo, não foi?

- Eu tentei consertar, ficou tudo chiado.

Era a mesma coisa, cada vez mais frequente: eu deixava a televisão funcionando e o safado ia lá mexer em tudo. Comecei a imaginar que era até de propósito, que ele estragava o serviço só para ter uma visita, com quem trocar algumas palavras, dar um pouco de vida àquele sarcófago de dois cômodos. Ele até recebia visitas, uma vez por mês, gente da família, mas eles nunca subiam, ficavam no carro e só um homem vinha até a portaria para chamá-lo, devia ser filho dele, tinha uns quarenta, cinquenta anos. Mas já deve fazer quase dois meses que seu Alício tem pedido para falar que ele não está. Devem ter brigado, aí o velho desandou a ficar carente e eu, bom, eu estou aqui, desenrolando cabos e tentando ouvir o que ele fala lá de dentro.

Após desfazer a confusão de cabos, antes de sair do apartamento, tentando evitar de ter que voltar ali em um ou dois dias, resolvi intimá-lo:

- Seu Alício, o senhor pode vir até a sala, por favor?

- Precisa mesmo?

- Para ver como é que tem que deixar os cabos.

Um pouco surpreso, ele relutou, tentou dar uma desculpa, resmungou, mas eu insisti, falando que era rapidinho, e ele acabou cedendo.

Quando seu Alício apareceu na sala-cozinha, eu olhei imediatamente para os cabos da antena, bem no caminho para a única janela do apartamento, e minhas pernas estremeceram. Ele vinha vagarosamente, apalpando as paredes e móveis, falando comigo, mas olhando para o meio da sala, estava completamente cego. Saí sem bater a porta.

29 de outubro de 2010

Salgueiro-chorão

Um tanto inseguro

curvava-se, desiludido

diante dos menores desafios


Enraizado em apatia,

quanto mais ele crescia,

mais perto ficava do chão


28 de outubro de 2010

Anestesiado

No centro da cidade, paro diante da banca de jornal e, já acostumado, não me surpreendo mais com as capas dos diários sanguinários, entre linchamentos, psicopatas e incendiários. Seguindo meu caminho, cruzo com dois ou três mendigos, flagelados, mutilados e doentes, comendo lixo e desvirando gente, cena também recorrente, que não mais me surpreende.

Ao chegar ao calçadão, deparo-me então com uma rodinha de curiosos, extasiados, cobrindo-me a visão e obrigando-me a abrir espaço. Ao conseguir aproximar-me, deparo-me com um grupo menor, de uns cinco ou seis, todos agachados, a devorar um rapaz, bem moço, devia ter uns vinte e dois. De quando em quando, um ou outro, já saciado, dava o lugar a um dos que esperavam em pé, ali em volta, já com água na boca. Um pouco surpreso, mas sem fazer muito caso, perguntei a um sujeito ao meu lado, que havia acabado de dar a vez:

- O que foi que ele fez?

Após limpar o sangue do canto da boca com as costas da mãos, ele respondeu, calmamente, com toda a lucidez:

- Furando fila...

26 de outubro de 2010

Mitomaníaco depressivo

Aquilo que ele tinha era mesmo vocação, um talento nato, pra essa coisa de ser enganado

Na maioria das vezes, nem precisava recorrer ao auxílio dos outros, de boa ou de má vontade, iludindo-se a si próprio

25 de outubro de 2010

Ensaio sobre a suspensão

Na outra ponta da vara, após a linha e a bóia, traído por iscas atraentes, o peixe debate-se, luta bravamente. Em seu meio, a água, ele tem força, parece ter duas ou três vezes mais peso, e, invariavelmente, ao pairar suspenso no ar, nos surpreende com seu tamanho, muito menor que o esperado, pela força que exige dos braços.

Nós, por outro lado, ao sermos puxados ou empurrados, tendemos a fincar os pés em terra e resistir, usando de todo o nosso peso para lutar pelo nosso lugar. Nos meios virtuais, no entanto, sem ter onde pôr os pés, pairando sobre águas turvas, deixamo-nos levar, como penas ao vento, e seguimos, fisgados, para onde as correntes nos levarem, sem nem ao menos debater.

22 de outubro de 2010

Insensitivo

Sentiu uma influência estranha pairando no ar. Pegou rapidamente uma caneta, fechou os olhos e, com as mãos à testa, tentou psicografar uma nova obra

Com as mãos estáticas, abriu um pouco o olho direito, tentando espiar a folha à sua frente. Ao ver o papel em branco, arregalou os olhos e esbravejou em pensamento: malditos espíritos sem talento

21 de outubro de 2010

Cócegas

Despido e alucinado

estapeou-se diante de todos

entre risos de agonia


Sob aqueles olhares incrédulos

percorriam seu corpo todo

mil aranhas de pernas finas

20 de outubro de 2010

Sacrifício

Já passava de quinze horas seguidas na cozinha, sofrendo com o calor e enxugando o suor da testa com as costas das mãos. Vez ou outra, enfrentando o cansaço e as dores nas costas, curvava a coluna e o pescoço, com as mãos apoiadas nos joelhos.

Na pia, além do liquidificador e da batedeira, acumulava-se uma pilha de panelas, espátulas, colheres de pau e outros acessórios, todas engorduradas, encardidas, avisando-a que não bastava terminar todos os pratos, o trabalho ainda duraria até bem tarde.

Para piorar a situação, a cada sobremesa terminada, sofria para encaixá-la no frágil equilíbrio das prateleiras da geladeira. Já havia derrubado mais de um dos potes de conserva ao tentar encaixar as travessas entre os mantimentos, as sobras das receitas e os refrigerantes. Quanto aos pratos que seguiam para a mesa, o problema era ainda maior, pois o espaço era menor e não podia faltar lugar para as pessoas, para os copos, os pratos de cerâmica, ainda novos, e os aperitivos, que já estavam precisando de reposição por conta dos larápios que rodeavam a sala desde o final da tarde.

Quando finalmente terminou tudo, com exceção da louça, que deu-se ao luxo de deixar para depois da refeição, seguiu direto para o chuveiro. Passou um bom tempo debaixo da água quente, tentando relaxar a cabeça e os músculos cansados, apesar de todo o barulho dos convidados que chegavam.

Após embrulhar-se em roupas e sapatos recém-comprados, maquiar-se e ajeitar bem o cabelo, percorreu triunfante, sorridente, o corredor em direção à sala. A alegria, no entanto, durou pouco. Ao adentrar, reparou que todos já estavam servidos e, alguns, até satisfeitos, já assaltavam a geladeira atrás das guloseimas. Nas travessas, restava pouca coisa, quase nada. Por todos os cantos, acumulavam-se os pratos com restos indesejados. E no tecido claro do sofá, destacavam-se as manchas dos que recusaram-se a buscar os guardanapos na despensa.

O sorriso desfez-se em raiva, angústia. Sentiu-se indignada com a falta de respeito que repetia-se, mais uma vez: comeriam e partiriam. Parada no centro da sala, cercada por aqueles que, naquele momento, mal reconhecia, teve, pela primeira vez em toda a vida, um legítimo desejo de fazer o mal a alguém, sem olhar a quem. Foi quando a nora dirigiu-se a ela, na melhor das intenções:

- Anime-se, querida! É Natal...

19 de outubro de 2010

Ofuscada

A irmã mais nova, destemida e orgulhosa, ia na frente, sem apoiar-se em nada. A mais velha seguia logo atrás, apoiando-se na bengala, segurando-a pelo braço e direcionando-lhe os passos.

Ainda quando eram crianças, a mais velha prometeu que sempre cuidaria da pequena. Apesar de saber dos riscos, deixava-a, ao menos, seguir e sentir-se à frente. Preferia que fosse assim, não queria tocar no assunto. Sabia muito bem o quanto seria doído, angustiante, para a mais nova assumir as dores nas juntas e, principalmente, a vista anuviada, primeiro estágio da catarata.

18 de outubro de 2010

Castigo

Antes de iniciar qualquer frase, tossia por três vezes, uma tosse seca, sofrida, com o punho cerrado diante da boca. Depois de respirar fundo, citava um dos elementos da santíssima trindade e, somente então, fazia alguma referência ao assunto.

Por quatro anos, durante o ensino fundamental, aquela moça com roupas e trejeitos de senhora tentou nos passar algum conhecimento nas aulas de ensino religioso. O problema é que, quando ela terminava o ritual das tosses e bençãos, ninguém mais estava prestando atenção. Durante os quatro anos, ela falava e falava, lia trechos da bíblia, explicava as parábolas e tentava nos encher de esperança no natal, culpa do carnaval até a páscoa e, entre a páscoa e o natal, um misto de compaixão e conformismo.

Até acredito que alguns daquela turma ainda carregam influência dela nos dias atuais, mais de vinte anos depois, principalmente os que foram alvos dos fervorosos - mas, felizmente, pouco frequentes - sermões. Teve um garoto que levou um ovo de chocolate para a escola, na semana anterior à páscoa, coitado. Ela deu-lhe um sermão de ecoar nas outras salas, crucificou-lhe pela gula e pelo descaso com o senhor, que estava prestes a sacrificar-se pelos pecados dele. O garoto tinha sete ou oito anos, não deve mais comer chocolate até hoje.

15 de outubro de 2010

Sem saída

Um dia acordou, olhou-se no espelho e percebeu de prontidão que estava mais velho. Ao chegar ao escritório, começou a reparar que as pessoas o olhavam de maneira diferente, tratavam-no com mais cuidado e dirigiam-se a ele em tom mais respeitoso.

Ao entrar no carro, de volta para casa, sentiu-se como um senhor sentado em um carro de frente larga, talvez um Landau ou Opala, com estofamento em imitação de veludo, coberto por um suporte para as costas repleto de bolinhas massageadoras de madeira.

Chegando em casa, viu-se no sofá, de chinelos felpudos, samba-canção e camisa regata, acompanhando os jogos de futebol na televisão enquanto a barriga crescia.

Ainda sem sono, após deitar-se na cama, ajeitando-se para não dar mal jeito na coluna, relembrou os velhos tempos: na juventude, antes de perceber aquela entrada, quando tinha a cabeça cheia de planos, sonhos e fios de cabelo.

14 de outubro de 2010

Abatido

Andava extremamente cansado e já não conseguia mais prestar atenção a nada nem ninguém. Esgotado, resolveu tirar um dia de folga, foi para a praia.

Com o vento afagando-lhe a face, levou pouco mais de cinco minutos para dormir à beira-mar. Ao cair da tarde, apesar de ter armado a cadeira bem longe da água, a maré subiu e algumas ondas bravias vieram lamber-lhe os pés. Acordou assustado, levantou-se de um impulso e correu atrás dos chinelos que iam sendo carregados. Quando finalmente resgatou os dois pares, virou-se para a praia vazia e, só então, lembrou: o garoto tinha vindo junto.

13 de outubro de 2010

Intento

Comovido com a situação, tida como rara nos dias de hoje, recebeu de volta a carteira, colocou-a no bolso e, após agradecer, estendeu a mão ao sujeito que lhe havia devolvido o pertence perdido. Esperando um sorriso agradecido, surpreendeu-se com a reação do sujeito que afastou-se, ao notar uma nota embrulhada entre os dedos, e indagou-lhe:

- O que é isso?

- Uma recompensa... - falou ele, inflado de sua nobre alma.

- Você acha que eu preciso disso?

Sem palavras, naquele exato instante, ele murchou, esvaziado pela ideia de que, com aquela atitude humilhante, contrariava aquele valores que pretendia exaltar.

12 de outubro de 2010

Dedução

As figueiras do passeio atraíram os olhares dos garotos. Os dois pararam, boquiabertos, diante daqueles troncos manchados de líquens e enrugados por dezenas de galhos entrelaçados. Antes que o pai pudesse fazer qualquer comentário, o mais velho, com oito anos, disse ao menorzinho:

- Essas árvores são muito antigas.

O pai, curioso, questionou:

- Como é que você sabe?

- Dá para ver pela cara.

11 de outubro de 2010

Degradação

Apesar da insistência do médico para que tomasse os remédios todos os dias, ela estava aprendendo a conviver com a dor. Com muito esforço, continuava realizando as tarefas da casa, indo ao mercado, à padaria, à praça e, aos domingos de manhã e quartas de noite, à missa. No entanto, em uma ida à padaria, sentiu uma dor aguda, profunda, nos dois joelhos, e acabou indo ao chão. Envergonhada, caída de bruços, com a saia levantada acima do joelho, as mãos raladas e as roupas cobertas por poeira e por folhas secas, permaneceu ali, naquela posição, até que dois taxistas aproximaram-se para ajudá-la a levantar.

Depois daquele tombo, não queria mais sair de casa, recolheu-se aos seus aposentos, reduzindo as caminhadas aos percursos entre quarto, cozinha, banheiro e sala, sempre se apoiando nas paredes, com medo de cair de novo. Ao fim de uma semana, as dores eram tantas, que ela havia começado a dormir sentada na poltrona da sala, para evitar cruzar todo o corredor até o quarto e, principalmente, a grande dificuldade para levantar-se da cama.

Um dia, a filha, sem notícias dela por semanas, resolveu visitá-la. Ao chegar à porta do prédio, foi alarmada por uma vizinha antiga da mãe, que já não a via mais sair para nada e que, nos últimos dias, também não ouvia muita coisa. Apressou-se a subir as escadas e, ao chegar à porta, sentiu um cheiro forte, horrível, e demorou a abrir a porta por conta da tremedeira. Esperando o pior, adentrou o apartamento e encontrou-a na poltrona, empalidecida, assustadoramente magra. Já tinha feridas nas costas e nas partes dos braços e pernas que ficavam apoiadas na cadeira. Em volta da poltrona, remanesciam alguns pratos de comida, já apodrecida, repleta de fungos de diversas cores. Ao abrir os olhos e perceber que a filha estava ali, estática, ela ameaçou levantar-se, mas desistiu, e então disse:

- Oi, minha filha! Não repare na bagunça.

O choro foi inevitável. A filha não sabia o que dizer, o que fazer. Estava chocada. Ajudou a mãe a caminhar até o banheiro, colocou-a debaixo do chuveiro, limpou-a por inteiro, incluindo as feridas, e depois a ajudou a caminhar até o quarto, para deitá-la na cama. Ligou para o marido, pedindo para que viesse logo, e começou a arrumar a sala, único cômodo que tinha sinais de qualquer atividade recente. Naquela tarde, apesar da resistência da mãe, que dizia estar muito bem, carregaram-na até o hospital - sem precisar usar de força, uma vez que ela não tinha condições de resistir fisicamente.

Nas semanas em que permaneceu internada, ainda com imensa dificuldade para levantar-se e caminhar até o banheiro, ela continuou a recusar os analgésicos e antiinflamatórios, insistia que estava sentindo-se bem. Por mais que tentassem, até mesmo escondendo as pílulas na comida, não conseguiam convencê-la a engolir. Os médicos já cogitavam sedá-la, para então administrar a medicação no soro, e recomendavam à família que, assim que tivesse condições de receber alta, ela fosse levada a uma instituição psiquiátrica para avaliação - afinal, não era normal aquela recusa, insistente, de remédios que poderiam melhorar a qualidade de vida de pacientes no estado dela.

Nas breves conversas com a filha, desviava do assunto quando se tratava dos remédios. Antes de ser sedada, se negava a dar qualquer explicação aos médicos. Além disso, refutava os diagnósticos de piora no quadro da artrose e fazia questão, ainda que ninguém a ouvisse, de falar sobre o clima, os rumos das novelas e outros temas rotineiros, que costumavam dominar seus diálogos antes de ser tomada pelas dores. Ao psiquiatra, nunca revelou seus verdadeiros anseios e medos. Acabou, por fim, internada, sem nunca mencionar a ninguém os motivos de sua recusa, claro indício de depressão, autodegradação.

Após meses presa naquele quarto insípido, sob efeito de fortes sedativos, aliados aos analgésicos e antiinflamatórios, todos misturados ao soro, ela só dispunha-se a falar sobre tarefas domésticas, filmes e romances, enquanto mantinha-se calada sobre a recusa dos medicamentos. Ela sabia que os médicos e parentes insistiriam, mas não iria, de maneira alguma, sujeitar-se a engolir comprimidos diários. Ainda estavam frescas as memórias do falecido: era tão saudável, mas definhou em um instante, assim que se aposentou e incluiu as pílulas para o coração na rotina diária. Em pouco tempo, já engolia cerca de seis comprimidos por refeição, cada qual com seus efeitos e defeitos. O remédio da pressão piorou a circulação, que mexeu com o coração, que causou um problema no estômago, pedra no rim, sobrecarga do fígado e, por fim, naquele equilíbrio tão frágil, de folha de outono em galho seco, um vento frio causou uma gripe, que se converteu em bronquite, pneumonia, e assim ele foi-se. Nunca soube os motivos que levaram todas aquelas pessoas, algumas muito amadas e bem criadas, a convencê-lo a seguir aquele rumo. No entanto, mesmo que não soubesse, esforçava-se para manter a rotina dos velhos tempos, ela não se renderia, não assim, tão fácil.

8 de outubro de 2010

Quimera

Ambas as garras cravaram-se em meus ombros. Olhei para cima, inclinando meu pescoço, e deparei-me com aquele monstro descomunal, prestes a carregar-me para sua caverna, local onde devoraria-me de maneira impiedosa. Minhas suspeitas, meus maiores temores, confirmaram-se quando ele abriu aquela assustadora bocarra:

- Termine logo esse relatório e acompanhe-me até a minha sala, precisamos ter uma conversa séria.

7 de outubro de 2010

Tragédia anunciada

Incapaz de sobreviver apenas com a aposentadoria, ela continuava trabalhando no salão. Contava sempre, a cada cliente que se sentava em sua cadeira, a triste história sobre a doença nos ossos, as fortes dores nos braços, falava que a máquina e a tesoura ficavam cada vez mais pesadas e que ela tinha que ser forte, porque não podia ser mandada embora.

Apesar dos cortes irregulares, desalinhados, por conta das tremedeiras e espasmos, recebia apenas sorrisos complacentes, abraços amigáveis e, vez ou outra, até lograva uma pomposa gorjeta. Ela sorria, acanhada, e escondia-se enquanto pegava o dinheiro e o escondia na bolsa - como se precisasse, uma vez que a dona do salão sempre manteve, propositalmente, por compaixão, a vista afastada daqueles generosos atos.

Antes que os clientes partissem, agradecia bem baixinho, ao pé do ouvido e entregava-lhes um papel dobrado, com seu nome e telefone, pedindo para que ligassem se não a encontrassem por ali, se por acaso retornassem. A maioria dos clientes saia dali com satisfação, por ter colaborado com uma senhora tão necessitada - relevavam o desastre capilar pelo prazer da boa ação. Alguns, inclusive, tornaram-se clientes fiéis. Às vezes, até reduziam o intervalo entre um corte e outro, para evitar que a coitada ficasse sem trabalho.

Um dia, todavia, sentou-se um moço na cadeira, querendo aproveitar o intervalo do almoço para aparar os lados, o “pezinho” e tirar bem pouco de cima. Logo que ela desandou a contar sua história triste, ele começou a sorrir. O sorriso deu lugar à costumeira cara de pena, deixando-a um tanto confusa. Após alguns segundos, tentou insistir na história, mas ele riu abertamente, mais alto, atraindo os olhares de todos os que estavam no salão. Ela, acanhada e ansiosa, não sabia como agir diante daquela situação, sob todos aqueles olhares.

Decidida a não citar mais a história, ao menos enquanto estivesse sob os olhares dos colegas e de outros clientes, ela continuou a aparar a parte de cima, olhando com estranheza, através do espelho, o rosto do rapaz que a desafiava. Os traços lhe pareciam familiares, mas não sabia de onde, de quando, como. Ao cruzarem os olhares, ela desviava. Era enorme o esforço para lembrar-se do rapaz e, também, para controlar a tremedeira e os espasmos. Extremamente nervosa, com medo de que alguém percebesse, pensava em como resolver aquela situação. E foi então, com o temor da descoberta em mente, quando respirou fundo, que ela chegou à conclusão: o rapaz sabia. Ela não sabia como, mas ele sabia, com certeza. Devia tê-la seguido no ônibus, ou morava no mesmo bairro. Ela sempre se cuidava, olhava bem em volta, mas não tinha como se controlar por vinte e quatro horas, sete dias por semana.

A partir daquele momento, ela soube que lidava com o inimigo, o sujeito que poderia revelar os seus segredos, fazer com que ela perdesse aquele emprego e, pior de tudo, podia desmoralizá-la diante de todas aquelas colegas, principalmente a Carla, a manicure, que vivia torcendo pelo tropeço alheio. O inimigo estava ali, parado, e apesar de enxergá-la pelo espelho, estava de costas para ela. No entanto, eles encontravam-se cercados, em uma sala com pouco mais de vinte metros quadrados. Diante do impasse, ela colocou-se a pensar em uma maneira de pôr-se livre daquela ameaça. Olhava em volta, constantemente, esperando brechas nos olhares e analisando as possibilidades.

Alguns minutos depois, entre uma e outra passada de máquina, aproximou, posicionando-o logo atrás da cadeira, o gaveteiro onde guardava seus equipamentos de corte, fotos dos parentes, produtos para o cabelo e catálogos Avon e Natura.

Ela continuou olhando em volta, suando frio, percebendo que, agora, o rapaz estava cada vez mais nervoso, sem saber o que lhe esperava. Reparava, em olhares de soslaio para o espelho, que ele estava confuso, com medo e, provavelmente, angustiado, ao ver-se em posição tão vulnerável.

Ao analisar a situação, ela lembrou-se de um livro que havia lido há alguns meses, auto-ajuda que ela nunca achou que ajudaria mesmo, e resolveu explorar as fraquezas do inimigo, o medo e a posição. Aguardou, calmamente, o desviar de olhares, exatamente quando Robson, o maquiador, chegou à porta da ante-sala, escandaloso como sempre. Os movimentos foram precisos, ao pegar a navalha e exibi-la através de espelho, sabia que o rapaz, já assustado, tentaria levantar-se, faria algum movimento brusco. Foi o álibi perfeito, juntamente com um dos espasmos, friamente controlados.

6 de outubro de 2010

Ciclo insustentável

De maneira nenhuma que eu vou escrever um livro. Para publicá-lo, eu teria de derrubar a única árvore que eu ainda nem plantei. A melhor opção é abandonar o projeto literário e poupar-se do trabalho ambiental, dois coelhos sem nem dar uma cajadada. E quanto ao filho, o terceiro pilar da vida dos ultrapassados, quem é que quer, hoje em dia, colocar uma criança nesse mundo violento, sujo, tão deturpado, não é mesmo?

A vida hoje em dia é muito mais objetiva, moderna e equilibrada. É tudo muito estratégico, analiso riscos e elimino qualquer possibilidade de erro. Não tem mais essa coisa de ficar caminhando sem rumo, deixando marcas e pegadas para todo lado. Permaneço parado, de cócoras, sustentando-me, na margem do suportável.

5 de outubro de 2010

4 de outubro de 2010

Apesar

Naquela época, mamãe não tinha rotina, saia de casa e fazia novas amigas todos os dias. Além disso, eu e ela éramos muito mais unidas, íamos juntas ao shopping e, na volta, ela me contava todas as histórias, falava das novas amizades e de mais um monte de coisas - eu não tinha como prestar muita atenção porque estava dirigindo.

Quando ela ficava em casa, ficava quietinha, no quartinho dela, lá no fundo do corredor, acho que assistia televisão - eu sei que ela deixava ligada, mas, talvez, fosse só para fazer companhia. Eu sempre tinha minhas coisas para resolver, sabe como é, a correria, e ela ficava triste, deprimida, dava até uma agonia.

Pelo menos, naqueles tempos, saíamos quase todo dia e quando eu não podia ir, dava um jeito de deixá-la na porta para depois buscá-la. Era ótimo. E sempre que eu chegava, ela surpreendia-se: primeiro reclamava que eu havia chegado muito cedo e depois assustava-se com a hora: "já?". Às vezes ela até insistia para ficar um pouco mais, mas eu não podia abandonar meus compromissos nem podia deixá-la ali.

Para ser bem sincera, um dia, sem querer, eu acabei deixando ela lá, esqueci completamente. Deu uma peninha quando ela chegou em casa, toda vermelha, suada, coitada. Mas nada foi pior do que ver ela depois das notícias do fechamento. Foi horrível. Presa em casa, ela definhou, aos poucos, isolando-se cada vez mais. Nenhum dos médicos soube dizer exatamente o que ela tinha, mas eu tenho uma certeza: a proibição dos bingos - e o fechamento daquele no shopping - é que matou a mamãe.

1 de outubro de 2010

Sabatina

Ao ouvir da televisão que o homem é um animal político por natureza, ajeitou-se na cadeira, deu uma tragada no paiero e puxou conversa com o cunhado:

- Olha, que esses político, arisco e sempre atento, se dão igual animal, isso eu já sabia. Mas que eles fazem alguma coisa pela natureza, isso pra mim é novidade.

30 de setembro de 2010

Golpe do esquecimento

O passado, obscuro

bate à porta do vizinho


Nós seguimos, indiferentes

como se não soubéssemos

que um dia teremos

de enfrentá-lo frente à frente

29 de setembro de 2010

Intolerância III

Os dedos finos da vítima apontaram para o suspeito, que ela havia reconhecido apesar do capuz. Seguraram-no enquanto discutiam:

Em relação à culpa, não tinham plena certeza. Todavia, ao discutir a pena, chegaram a um pleno acordo: deceparam-lhe a mão.







Fato: http://bit.ly/bjPbpf

28 de setembro de 2010

27 de setembro de 2010

24 de setembro de 2010

23 de setembro de 2010

22 de setembro de 2010

O barbeiro da rua do Catete

Apesar das dificuldades para manter-se na profissão - principalmente por conta da imagem criada pelos romances policiais, filmes de mafiosos e, também, em menor escala, pela criada no trânsito caótico da cidade - ele mantinha funcionando a pequena barbearia, herança do pai, uma das poucas que restava na zona sul, ali na rua do Catete. O pequeno negócio funcionava desde a década de trinta, quando era tocado pelo saudoso mestre Inácio, que tinha fama de ser muito habilidoso com a navalha - alguns, um tanto exagerados, diziam até que ele seria capaz de partir um pêlo em dois, bem no meio, mantendo as metades no mesmo poro.

Nas paredes descascadas daquela salinha dois por dois, entremeada por uma cadeira de couro, estofada, pendurava orgulhoso as fotografias dos clientes famosos. Por mais que a situação atual tornasse difícil até para imaginar os tempos áureos do local, por ali haviam passado, nos quase oitenta anos de existência, diversos atores, diplomatas, políticos e magnatas. As fotos eram um tanto parecidas, uma vez que quase todos os clientes tinham metade da cara coberta de espuma, mas, para cada foto, ele tinha uma história diferente: esse aqui, era amante da Carmem Miranda; o de cima, do bigodinho, era comunista; aquele ali ao lado, cada vez que vinha, revelava algum segredo de estado; esse ali, só pedia para aparar com a tesoura, deixava a barba crescer porque tinha medo da navalha.

Entre tantas histórias já decoradas, quase automáticas, uma, em especial, o fazia dar uma breve pausa, complementada por um suspiro, antes de continuar. Então, ele apontava para uma foto de um senhor rechonchudo, careca, de óculos, estampando um sorriso amigável, e contava: ele veio aqui na véspera, veio andando mesmo, pediu para que meu pai o deixasse apresentável. Meu pai até tremeu um pouco na hora, nunca havia tratado de um presidente - e eu nunca tinha visto ele tremer daquele jeito. Para quebrar o clima, ele fez uma piada com a tremedeira, dizendo que, daquele jeito, acabaria o matando. Depois, comentou um pouco sobre o bairro, perguntou sobre a vida dos que ali estavam e, antes de sair, cumprimentou todos os curiosos, até mesmo eu. Quando partiu, caminhando, parecia bem contente, acho até que assobiava. Ao saber da notícia pela manhã, ainda menino, fiquei chocado, não entendi o porquê daquela visita - afinal, ele já devia estar pensando no que acabou por fazer. Mas, depois, bem depois, eu acho que entendi: ele queria estar bonito, pelo menos apresentável, ao entrar para a História.

21 de setembro de 2010

20 de setembro de 2010

Destempero

Cansou-se daquela rotina insossa, levando uma vida um tanto intragável

Desgostado, decidiu experimentar alguns condimentos: suaves e relaxantes, picantes e aromáticos, ácidos e energéticos

Apesar das experiências, entre as inúmeras pitadas, nestas misturas desregradas, encontrou apenas dissabores. Já não sentia mais gosto por nada

17 de setembro de 2010

Precavida

Antes de sair, visando defender-se das possíveis investidas, preparou-se com o traje completo: calcinha bege e larga, meia-calça furada, calça jeans apertada e, por fim, o cinto, com o fecho bem complicado

No entanto, ao fim de uma hora, e duas taças de vinho tinto, parecia ter estado sempre por ali, vagando, desvestida

16 de setembro de 2010

15 de setembro de 2010

13 de setembro de 2010

Desenlace

Primeiro, tentei acelerar, mas o bandido era insistente e continuou ali, preso no meu para-brisa. Comecei a ziguezaguear pela avenida vazia, mas de nada adiantava, ele debatia-se, revirava o rosto, mas não se soltava. Sem qualquer remorso, fiz uma curva fechada, cantando pneus e, só então, o maldito desprendeu-se. Ainda o vi pelo retrovisor, rodopiando ao vento, antes de juntar-se ao resto do lixo eleitoral.

10 de setembro de 2010

9 de setembro de 2010

Obstáculo

Adélia adentrou a sala de reuniões imaginando que tratariam dos últimos detalhes para as comemorações do dia do escritor, afinal, um instituto daquele porte, com aquele invejável acervo, deveria organizar ao menos uma palestra, com convidados ilustres - e ela já tinha em mente as pessoas certas, os cronogramas, a decoração, tudo planejado, há anos. No entanto, ao reparar nos rostos entusiasmados dos que já estavam por ali, deduziu, do alto dos seus vinte e cinco anos de repartição, que não se tocaria em qualquer assunto culturalmente relevante - apesar de trabalhar em uma instituição cultural, poucos dos que a cercavam davam importância a algo além do salário que os permitia frequentar os caríssimos teatros da zona sul e os ainda mais caros cinemas de último andar de shopping. Um pouco preocupada, notou a presença de um rapaz engravatado, sentado na cadeira que costumava ser do senhor Garcia. Imaginou que o rapaz, novo no lugar, pudesse ter feito confusão na hora de sentar, mas, por já conhecer as danças das cadeiras que os políticos acabavam fazendo por ali nas trocas de comando, preferiu recorrer à atitude de sempre, manteve a aparente indiferença. Aos poucos, todos os funcionários foram chegando e, quando alguns já buscavam mais cadeiras nas salas ao lado, o rapaz disse que já havia trabalhado com o senhor Garcia quando começou na prefeitura, que o respeitava muito e, por fim, não querendo alongar mais o discurso apresentou-se como o novo chefe. Adélia examinou-o de cima abaixo - não devia ter nem trinta anos, um desses alunos de MBA: terno e gravata, notebook na mochila e um celular sempre ao alcance das mãos.
O Silas, puxa-saco oficial do instituto, pediu a palavra e deu as boas-vindas por todos. Já Amélia, esvazia-saco oficial, que colocava Adélia em algumas situações constrangedoras por ter um nome tão parecido, engraçou-se para cima do rapaz. Os outros funcionários mantinham uma posição moderada, felicitavam-no, mas sem demonstrar felicidade alguma, afinal, a morte do senhor Garcia, tão repentina, havia sido um choque para muitos deles. Adélia permanecia indiferente.
Após as apresentações e formalidades, o rapaz resolveu mostrar a que veio e, então, solicitou que todos se retirassem do recinto, com exceção a Adélia, com quem precisava conversar.
- Todos sabem que o senhor Garcia, que Deus o tenha, estava planejando uma reorganização das estruturas deste Instituto. Eu já fui informado de que, em algumas áreas, as discussões já estavam avançadas, e que, em outras, os projetos já estão em andamento. Você é responsável pela biblioteca, não é?
- Sim, sou eu.
- E o que tem a me dizer?
- Seja bem-vindo.
- Não, não. Obrigado! Mas quero saber sobre a reformulação da biblioteca. O que está sendo feito? Quais as sugestões? Os projetos? Não fui informado sobre nenhum avanço e, como você bem deve saber, a biblioteca é um dos setores essenciais deste instituto.
- Na verdade, a biblioteca não precisa de nenhuma mudança. Tudo funciona perfeitamente e ninguém fica sem atendimento. Eu sei exatamente onde está cada obra.
- Mas é exatamente esse o problema. Não podemos ficar dependendo dos seus serviços e da sua memória.
- Mas, alguém está reclamando? Não pode ser.
- Não, não é isso. Ninguém falou nada, eu acabo de chegar. Bom, de qualquer maneira, precisamos informatizar o sistema, para que qualquer pessoa, mesmo na sua ausência, possa encontrar-se em meio a tantos livros.
- Eu tenho minhas objeções...
- Não vamos nos precipitar em conflitos, eu não quero parecer um sujeito autoritário. Vamos combinar assim, você pensa em alguns itens que podem ser melhorados na biblioteca e me entrega um relatório na semana que vem. Que tal?
Adélia saiu da sala calada, fez apenas uma reverência com a cabeça, concordando com o chefe. Escorreu pelo corredor, desolada mais uma vez. Afinal, depois de colocarem tudo nas máquinas, quem precisaria de uma velha por ali, rondando os corredores, tentando lembrar-se de fileiras, colunas e sobrenomes de autores. Ela costumava ser a peça chave daquele lugar, todo mundo precisava dela, todos precisavam conversar, pedir alguma coisa e, volta e meia, acabava até recebendo algum agrado, flores no dia da bibliotecária e cestas de café da manhã no final do ano - todas utilizadas no ano seguinte para levar ovos de páscoa para as crianças do abrigo. Tinha uma posição privilegiada, regalias sazonais e, além de tudo, sentia-se menos só quando podia ajudar as pessoas a encontrar o que procuravam. Ao ver isso tudo sob ameaça, percebeu que, mais uma vez, não poderia permanecer indiferente.
Ao cair da noite, após o silêncio da biblioteca espalhar-se por todo o instituto, tal como havia feito na semana anterior, Adélia embrenhou-se pelos amplos jardins, dessa vez com o alvo certo, sem precisar procurar, dirigiu-se ao canto do muro logo atrás da estufa, um tanto abandonado pelo jardineiro, onde cresciam furtivamente três pés de mamona. Colheu dez daquelas bolinhas espinhosas e, quando já se dirigia ao portão de saída, acabou surpreendida pelo novo chefe, que aproveitava para conhecer melhor as instalações da estufa, uma vez que ele mesmo pretendia instalar uma em sua casa. Com o susto do encontro, Adélia deixou caírem ao chão sete das dez mamonas. O novo chefe abaixou-se para ajudar e disse:
- No escuro, vai ser difícil para encontrar, deixe que eu te ajude a procurar.
Com uma gota de suor frio prestes a escorrer pela nuca, ela tentou demovê-lo da boa intenção:
- Senhor Roberto, faça-me o favor, não precisa dar-se ao trabalho. São só algumas frutas, eu posso colher outras.
No entanto, ele já agachado, tateando a grama, estava disposto a colaborar, queria apagar qualquer má impressão que pudesse ter sido criada na primeira reunião:
- Não faz mal ajudar, até porque fui eu que acabei te assustando.
Tentando controlar a ansiedade, Adélia olhava tudo em volta, buscando palavras, buscando uma solução. Ele então levantou, subitamente:
- Ai, caralho!
- O que foi?
Aproximando-se da luminária pendurada à porta da estufa, ele continuou:
- Espetei meu dedo, não foi nada... Achei essa mamona aqui.
Adélia aproximou-se, com as três mamonas que lhe restaram nas mãos trêmulas, e disse:
- Seu Roberto, não precisa me ajudar não, vá tratar desse dedo.
Ao olhar para as mãos de Adélia, que instintivamente as recuou, ele perguntou:
- A senhora está colhendo mamona?
- É... Para fazer óleo.
- Podia ter me avisado, vou procurar com mais cuidado.
Ao terminar de falar, ele voltou-se novamente para o local onde estava agachado e retomou as buscas. Ela, tendendo ao desespero, voltou a olhar em volta, dessa vez procurando objetos e ações que pudessem resolver a situação. Agachado, tateando com mais calma o chão, ele puxou conversa:
- Não sabia que dava para fazer óleo com isso não. Só aquele biodiesel, mas aquele não deve dar para fazer em casa.
- Dá sim... Óleo de rícino.
Após virar-se de costas, ainda nas buscas:
- Mas isso é bom para quê?
- Congestão.
- Eu não sabia, não. Na verdade, a única coisa que eu sei, desde garoto, é que a semente disso é um veneno.
O silêncio que se seguiu só foi interrompido pelos grilos.

8 de setembro de 2010

Apreensão

Após o passeio e as compras, um tanto nervosa, por conta de mais um de seus descuidos, dirigiu-se à moça que estava dentro daquele cúbiculo, atrás da divisória de vidro: 
- Moça, olha só, eu estou com um pouco de pressa, mas não estou encontrando o papelzinho. 
- Desculpe-me senhora, mas sem o tíquete eu não posso fazer nada. 
- Mas, não tem como dar um jeito? 
- Não, senhora. O aviso aqui ao lado é bem claro. 
Ao lado da cabine da atendente, destacava-se uma placa branca com letras vermelhas: "Cuide bem do seu tíquete. As devoluções serão feitas somente mediante a apresentação do mesmo". 
- Mas o que eu devo fazer? Ir embora sem ele? 
- Sem o tíquete, ou algum documento para provar que é seu, vai ter que ir sem ele. 
- O documento ficou em casa! 
- E não tem ninguém para quem a senhora possa ligar, para vir aqui trazer? 
- Não! Eu sou solteira, não tem ninguém. E de jeito nenhum que eu vou deixá-lo aqui para ir buscar a papelada e depois voltar! 
- Então não tem jeito. 
- Mas, ele está ali do lado! Eu posso provar que é meu! 
- Eu já disse que não posso fazer nada. E, além disso, a senhora está segurando a fila.
Após olhar para trás e deparar-se com uma senhora consultando a hora em seu celular, voltou-se novamente para a atendente: 
- Segurando a fila... Você é que está segurando a fila porque não consegue resolver um simples problema! 
- Senhora, eu vou chamar a gerente. Você conversa com ela. 
- Exatamente o que eu ia pedir: chame a gerente! Alguém que possa fazer alguma coisa. Muito obrigada!
 Após o olhar sarcástico para cima, combinado com a leve mordida do lábio inferior, a atendente pegou o rádio sobre a mesa, convocou a gerente e começou a atender o próximo da fila. Ela, batendo o pé direito no chão, de braços cruzados, olhos bem abertos e soltando o ar pela boca, aguardou a chegada da gerente, que oficialmente, de acordo com a carteira de trabalho, era uma assistente administrativa. 
A assistente, empossada de ares de gerente, em seu terninho preto, com um rádio pendurado à cintura, as sobrancelhas bem levantadas ao centro e um bico que parecia exigir muito esforço para ser mantido, chegou tentando acalmar a cliente: 
- Desculpe-me pela demora, a senhora aceita um copo de água? Um café? 
- Eu só quero resolver esse problema. 
- Tudo bem. Então vamos direto ao que interessa. Qual é o problema aqui? 
- Eu estou com pressa, mas sem os documentos, e aquela funcionária diz que não pode fazer nada sem o tíquete. 
- Nós vamos resolver esse problema. Mas, a senhora há de convir que os procedimentos adotados são para garantir a sua própria segurança. 
- Sim, você está certa. Mas, o que você pode fazer? Eu preciso de uma solução. 
- Nós podemos conferir pelas câmeras de segurança, para confirmar que a senhora chegou com ele, só que esse processo leva cerca de cinquenta minutos. A outra opção é esperar que o shopping feche e sobre apenas o seu. Nesse caso, o problema é se tiver mais gente sem tíquete. Ou... 
A expressão da gerente ao não completar a frase a fez sentir um arrepio na espinha, ainda assim, perguntou: 
- Ou? 
- Alguém aparecer com o seu tíquete. 
- Deus me livre! Não me fale uma coisa dessas! Já me basta ter que esperar todo esse tempo para poder tê-lo de volta. Se alguém tentasse levá-lo, ia ter que me arrastar junto! 
Após uma breve pausa, esperando uma reação humana e, talvez, solidária, que não veio, continuou: 
- Mas, bom, já que vou ter que esperar de qualquer maneira, é melhor que vejam logo as câmeras. 
- Vou providenciar a conferência das câmeras e, assim que tiver retorno, informarei a senhora. 
- Ah, e vou aceitar aquele café! 
Ao sentar-se ali ao lado, ela escutou ao fundo aquela voz arrastada e manhosa, de quem não vê mais graça nenhuma na piscina de bolinhas ou na moça que fala muito alto, repete bons dias até ele responder e age com demasiada animação: 
- Mãe! 
A voz insistia: 
- Mãe! 
Ela levantou a cabeça, com o ouvido bom virado para a origem daquele som. Demorou um pouco a perceber que era com ela, abriu levemente a boca e cobriu-a com a mão, censurando-se por não ter percebido antes. Após levantar-se, aproximou-se do cercadinho infantil, curvou-se diante do garoto e perguntou: 
- O que foi, meu filho? 
- Eu quero ir embora! 
- Nós já vamos, querido. Por enquanto, por que é que você não brinca mais um pouco com a tia? 
Imediatamente franzindo o cenho e cruzando os braços, ele retrucou: 
- Não quero! 
Corrigindo a postura, para ficar muito acima do garoto, e fechando levemente os olhos, ela proferiu a sentença final: 
- Pois vai ter que brincar sim! A mamãe perdeu o papelzinho para te tirar daí e a moça vai demorar pra resolver.

6 de setembro de 2010

Ruínas

Antevejo, em minha tela de cristal, o esgotamento de todos os recursos

Estamos todos condenados, acabou-se o mundo das boas idéias

2 de setembro de 2010

A traição de Eurídice

Agora, só me resta seguir em frente, tentando não olhar para trás. Daqui em diante, ela será apenas mais uma sombra, fadada a desaparecer, mesclando-se à escuridão das minhas memórias mais traumáticas. Eu cruzaria o inferno por ela, mas, por mais que me esforçasse, nunca a perdoaria.







ps: baseado no mito de Orfeu

1 de setembro de 2010

Desjeito

Após muito refletir, chegou à conclusão de que não havia um modo mais delicado de tocar no assunto. Sem saber onde colocar as mãos, entre enfiá-las no bolso ou cruzar os braços, comentou, como se por acaso:

- Você viu que agora tem uns sabonetes vaginais? Estranho, não é? Será que funcionam?

24 de agosto de 2010

Absolvidos

Ao final do julgamento, levando em conta a insuficiência das faculdades, e o notável estado de inconsciência, decidiram que a população não tinha culpa alguma

20 de agosto de 2010

Subexistência

Bem, sabe como é trabalhar na terra por esses dias: a parte que me cabia já estava pra lá de apertada. Eu não dava mais conta de tirar o sustento da família daquele pedaço de terra. Até daria se a minha senhora não fosse tão firme na exigência dos garotos irem à escola todo santo dia, ao invés de ficarem por lá me ajudando. Se não bastasse isso, cada dia tinha uma doença nova na lavoura e, juntinho com ela, aparecia logo um novo "defensivo agrícola", coisa que na minha época a gente chamava de veneno mesmo, mas vai entender esse mundo. Falando nisso, depois que vieram essas doideiras do clima então, aí é que não brotava mais nem capim para dar de comer ao bode. Não tive outra solução, consegui o melhor preço possível na terra - aquele punhadinho de pouca coisa que a gente chamava de casa - e partimos para a capital, mentindo para os meninos que lá havia de ser bem melhor para os estudos e que, logo logo, voltaríamos para a nossa terrinha. E foi mais ou menos isso. Um pouquinho mais, na verdade, porque eu resumi, mas cá estamos e eu, para ser bem sincero, estou um pouco aliviado. Acho que tomei o rumo certo. E você, como está?

19 de agosto de 2010

Engano

- Alô!

- Boa tarde, o senhor Seixas encontra-se?

- Quem quer falar com ele?

- Falo em nome do Banco Rio Sul.

- E por que é que não pode falar comigo?

- Desculpe-me, senhora, mas devo falar diretamente com o senhor Seixas.

- Olha aqui, mocinha, tudo que é do interesse do Alberto é também do meu interesse. Saiba você que sou a senhora Seixas e que, apesar de ainda não ter passado tudo no papel, somos muito bem casados!

- Peço desculpas novamente, mas eu preciso falar com o senhor Seixas, temos alguns assuntos para resolver e, para isso, preciso que ele confirme alguns dados, senhora.

- Não me chame de senhora, mocinha. Eu devo ter quase a sua idade!

- Desculpe, mas foi a senhora...

- Senhora não!

- Desculpe. Foi você que me disse que era a senhora Seixas.

- Era e ainda sou!

- Tudo bem, mas, ainda assim, preciso conversar com o senhor Seixas.

- Mas quanta insistência, trate logo desse tal "assunto", seja ele qual for, comigo mesma. Afinal de contas, o que é que você precisa? Deu algum problema no cartão? Alguma coisa nos investimentos? O que foi?

- Trata-se de uma dívida, senhora.

- O que foi que você disse?

- Desculpe novamente, não tive a intenção.

- Não, não isso. Você disse que tem uma dívida?

- Sim, senhora! Eu trabalho na área de cobranças. O saldo devedor do senhor Seixas está acima do tolerável pelas políticas da empresa há alguns meses. Por isso estamos ligando para informar que os cartões serão suspensos se não negociarmos esta dívida.

- Ah, mas isso você que resolva lá com aquele traste. Eu não tenho nada a ver com esse sujeitinho!