1 de novembro de 2010

A porta aberta

Já era a terceira vez naquela mesma semana que eu ia até o 702 para arrumar a televisão do seu Alício. E era sempre a mesma coisa: eu chegava, batia à porta, só por educação, porque sabia que ficava aberta, o velho gritava lá de dentro para entrar e, só então, eu entrava, pedindo licença, para dar de cara com a sala-cozinha vazia, com a televisão no canto da janela e com os cabos da antena novamente embaralhados.

Ao notar a nova confusão, perguntei, em bom tom, para que fosse ouvido do quarto:

- Seu Alício, o senhor andou mexendo aqui de novo, não foi?

- Eu tentei consertar, ficou tudo chiado.

Era a mesma coisa, cada vez mais frequente: eu deixava a televisão funcionando e o safado ia lá mexer em tudo. Comecei a imaginar que era até de propósito, que ele estragava o serviço só para ter uma visita, com quem trocar algumas palavras, dar um pouco de vida àquele sarcófago de dois cômodos. Ele até recebia visitas, uma vez por mês, gente da família, mas eles nunca subiam, ficavam no carro e só um homem vinha até a portaria para chamá-lo, devia ser filho dele, tinha uns quarenta, cinquenta anos. Mas já deve fazer quase dois meses que seu Alício tem pedido para falar que ele não está. Devem ter brigado, aí o velho desandou a ficar carente e eu, bom, eu estou aqui, desenrolando cabos e tentando ouvir o que ele fala lá de dentro.

Após desfazer a confusão de cabos, antes de sair do apartamento, tentando evitar de ter que voltar ali em um ou dois dias, resolvi intimá-lo:

- Seu Alício, o senhor pode vir até a sala, por favor?

- Precisa mesmo?

- Para ver como é que tem que deixar os cabos.

Um pouco surpreso, ele relutou, tentou dar uma desculpa, resmungou, mas eu insisti, falando que era rapidinho, e ele acabou cedendo.

Quando seu Alício apareceu na sala-cozinha, eu olhei imediatamente para os cabos da antena, bem no caminho para a única janela do apartamento, e minhas pernas estremeceram. Ele vinha vagarosamente, apalpando as paredes e móveis, falando comigo, mas olhando para o meio da sala, estava completamente cego. Saí sem bater a porta.

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