25 de novembro de 2010

Cantando na chuva

 Naquela época, não havia quem não o reconhecesse quando caminhava pelo centro. Alguns até ensaiavam alguns passos e o seguiam pela rua, na expectativa de que ele cantasse - ao menos algum refrão - e exibisse toda sua habilidade no sapateado. Ainda que um pouco contrariado, e um bom tanto sem graça, ele sucumbia aos desejos dos fãs e acabava por apresentar alguns passos e um trechinho de alguma das canções dos sucessos de bilheteria.
Paolo Bellini, apesar do nome estrangeiro, era uma estrela nacional, ainda não era das maiores, mas despontava como um dos atores e cantores com maior potencial de futuro. Os críticos diziam que seria o Gene Kelly tupiniqueim; que logo estaria dando as caras - e as cartas - em Hollywood, enquanto os colegas o admiravam pela capacidade de criação, direção e atuação nos grandes musicais.
Contudo, apesar do otimismo, tão logo ele despontou, os musicais começaram a perder força. Ainda que os produtores insistissem, tentando inserir elementos da cultura nacional e da comédia, as bilheterias caíram vertiginosamente após o “efeito novidade”: todos quiseram conhecer o cinema falado e cantado, mas muitos, depois de conhecer, preferiam ouvir rádio, que era de graça. Com a queda nos rendimentos, e o consequente corte de gastos, a qualidade das produções também caiu; Apesar de continuar atuando, por não poder se dar ao luxo de recusar os minguados salários, ele já não tinha mais tanto espaço - nem tantas expectativas. Geralmente, quando escalado, fazia papéis secundários, quase figurantes, entre recepcionistas de motel e turistas abobalhados.
Com a chegada da televisão e das novas influências no cinema, Paolo perdeu definitivamente o pouco espaço que tinha. Ainda marcado por suas atuações nos musicais, seguidas por pontas estereotipadas em comédias de mau gosto, acabou sendo visto como um bom cantor, mas que não tinha talento algum para a atuação. Por este rótulo, ingratamente anexado a ele, acabou esquecido tanto pelo cinema quanto pelos canais de televisão, que haviam contratado boa parte dos seus antigos colegas.
Depois de tantas decepções, com o esvaziamento de seu potencial - consumido pelo álcool e pelo cigarro, foi uma questão de tempo até que ele arruinasse qualquer chance de recuperação da carreira. Por um punhado de trocados, cantava em bares, casas noturnas e ambientes pouco familiares. Além de ganhar pouco, ainda gastava mais da metade antes mesmo de cambalear de volta para o quartinho imundo em que se largava; A essa época, morava na Gomes Freire, em um puxadinho nos fundos de uma pensão para solteiros.
O passar dos anos fez questão de surrar-lhe a voz e as juntas. Após algumas décadas, ele mal podia reconhecer-se nos cartazes dos tempos áureos, que guardava bem dobrados, com todo cuidado, em uma velha maleta de couro, debaixo da cama do quartinho da pensão - onde já morava de favor há mais de dez anos. Naquele tempo, usava barba longa e bigode, saia à rua apenas para o essencial e tinha pavor de citar o próprio nome - sentia-se extremamente mal, irritado e injustiçado, quando alguém o reconhecia, por rosto ou por nome, e questionava: “Mas você não era ator de cinema?”.
Nos bares da região, muitos dos garçons o conheciam - dos tempos de cantor boêmio - e, quando podiam, tratavam de alimentá-lo. No entanto, quando os clientes pediam, não demoravam a afastá-lo. Nunca chegou reclamar ou a agredir alguém, talvez nem tivesse condições físicas para isso, mas causava um mal estar e, então, os garçons preferiam retirá-lo, até para evitar que se criasse confusão. Diante das expulsões, ele costumava abaixar a cabeça e dirigir-se ao abrigo do velho quartinho da pensão.
Uma tarde, no entanto, ele apareceu no botequim muito sujo, esfarrapado, parecia ter passado dias na rua, e começou a cantarolar. Os clientes logo reclamaram e, quando o Arlindo, garçom do botequim, sugeriu que ele se retirasse, a reação foi diferente do esperado. Ao invés de acatar a ordem de retirada, ele puxou-o pelas mãos e arriscou alguns passos. Visivelmente acanhado, Arlindo travou as pernas no chão e apenas observou o sapatear destrambelhado, ainda que bem ritmado, daquele velho conhecido de vista, da noite. Incomodado com a falta de ritmo e com o acanhamento do garçom, ele corrigiu a postura - o máximo que podia - e contraiu o punhado de rugas que lhe cobria a face, expressando profunda irritação; Entre algumas palavras mais rudes, disse que não podia continuar daquela maneira, com parceiros sem talento, e saiu do bar, apressado.
Ao chegar ao largo da catedral, ainda irritado, ouviu os acordes e batuques de alguns músicos que costumavam tocar por ali, quase todo dia, entre o horário do almoço e o final da tarde. Em sua deixa, ele começou a acompanhar a música, cantarolando e sapateando, girando em torno de si mesmo. Ao olhar em volta, demonstrou novamente aquela profunda irritação e começou a fazer gestos bruscos, dando ordens para que todos seguissem os passos e fizessem parte do coro. Tentou mais uma vez, do início, sempre olhando para os que o cercavam e balbuciando ora palavras de ordem, ora de incentivo.
Um casal de estudantes, Vinícius e Patrícia, entusiasmados com a intervenção, começaram a participar: cantarolavam junto e dançavam conforme as instruções daquele senhor esfarrapado. Logo, Paulo, um garoto recém-saído da escola começou a captar a movimentação na câmera do celular e alguns de seus colegas começaram a seguir os passos indicados. Em cinco minutos, havia uma dezena de figurantes sob o comando daquele inusitado coreógrafo; Até mesmo a banda resolveu seguir as instruções. Aquela trupe aleatória, após dez minutos de ensaios e ajustes, atraiu dezenas de curiosos e executou um breve número musical, com uma só canção.
No entanto, ao fim desta apresentação, logo depois dos aplausos, a trupe acabou separando-se, pelos mesmos motivos que as trupes sempre se separam: divergências em relação aos cachês, incompatibilidade de horários, brigas internas, etc. Os dançarinos, em horário de almoço, tratavam aquela trupe como uma diversão, no máximo um projeto paralelo de um dia aleatório, algo para se contar aos amigos na mesa de bar. Inevitavelmente, acabaram desertando e seguindo suas vidas; Ele não se preocupou, arranjaria facilmente dançarinos melhores.
O grande problema foi com a banda. Alguns dos curiosos, ao final da apresentação, dirigiram-se ao protagonista, diretor e coreógrafo, para dar-lhe alguns trocados; Ele, no entanto, recusava-se a recebê-los e ainda respondia, com empáfia, que não trabalhava por migalha. Diante da recusa, os integrantes da banda viram escapar-lhes - das mãos e chapéus - diversas moedas, algumas notas de dois, pouquíssimas de cinco e até mesmo uma rara nota de dez.
Não demorou até que o palco se esvaziasse, e foi então que os músicos, sentindo-se injustiçados, aproveitaram para rediscutir as cláusulas do contrato. Carregaram aquele senhor, conhecido de rua, até o outro lado do largo, nos fundos da velha catedral, e o surraram, entre gritos de “velho desgraçado”, “burro” e outros termos menos apropriados. Nas pausas entre chutes, ele mal conseguia respirar, mas quando falou, implorou desesperado, pedindo por um dublê. Os músicos, no papel de juízes e carrascos, aplicaram a justiça da rua; E o deixaram por ali. Alguns sentiram um pouco de dó, principalmente pelas condições do sujeito que massacraram, mas não podiam se deixar levar por um sujeito qualquer, que recusou, em nome deles, uma noite em camas quentes - talvez até acompanhados.
No dia seguinte, envolvido em lençóis de algodão, com as feridas já limpas, mas muito doloridas e completamente roxas, ele tentou falar com Beatriz, a enfermeira que atendia o paciente ao lado, não conseguiu e urrou de dor, por conta do maxilar deslocado. Conformou-se com a idéia de que ficaria ali por dias, tomando sopa de canudinho, sem saber como chegara nem quando partiria. Passou a observar os outros pacientes e a bolar coreografias de acordo com os aparelhos e limitações de cada um. Ao final de três semanas, quando já conseguia falar e tinha dois dos três atos bem planejados, começou a conversar com os que o cercavam, dando instruções do que cada um devia fazer.
De início, Beatriz achou aquilo tudo muito inusitado, engraçado, mas começou a preocupar-se na época em que se iniciaram os ensaios. Alguns dos pacientes, dos poucos que seguiram as direções, tiveram considerável piora em suas condições clínicas. Por esses agravos, acabaram, em um primeiro momento, mudando ele de ala. Contudo, depois de repetir-se a situação com alguns pacientes da segunda ala, tiveram certeza de qual era o foco daqueles problemas e, para pôr um fim à situação, o isolaram.
Alguns dias depois, devido ao alto custo de mantê-lo sozinho em um apartamento, ele acabou recebendo alta. Antes de sair, Beatriz, sabendo que ele ainda não estava exatamente curado, questionou-lhe se havia alguém para avisar, para que viesse buscá-lo, mas ele não soube responder. Depois, perguntou como ele voltaria para casa, mas ele já estava saltitando para fora, acostumado que estava após dois meses com a muleta. A enfermeira, apesar de sentir-se comovida, retornou a seus afazeres e logo esqueceu aquele sujeito arrebentado, que conhecia pela ficha médica e por uma ou outra agulhada no braço.
Ele chegou à praça principal pouco depois do início da chuva. Após a longa caminhada, sentia dores por todo o corpo, principalmente nos braços. Todavia, sendo uma estrela, não se deixaria abater por estes pequenos incômodos. Começou a arriscar alguns passos, com a muleta, enquanto tentava cantar; Não demorou até que ele se desequilibrasse. No meio da praça vazia, caído sobre uma das pernas, com os braços estatelados, um para cada lado, e a orelha esquerda mergulhada em uma fina lâmina de água, só lhe restava tentar cantar, apesar de seu inglês pouco lapidado, entre pausas de profundo lamento e dor:
- I´m singing in the rain...

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