24 de novembro de 2010

A cada um seu fardo

O patrão precisava de alguém que estivesse disposto a enfiar-se naquele macacão felpudo, colocar aquela peruca com forro de espuma e que, tal qual uma costela embrulhada em celofane, permanecesse ali, na frente da loja, cozinhando por várias horas. Demoraram a encontrar um corajoso - ou louco - e, em cima da hora, sem outra opção, o primeiro candidato foi logo efetivado.

Ele, que só estava ali porque também não tinha outra opção, chegou as oito e meia e desde as nove da manhã estava fantasiado, balançando uma placa com o novo slogan e observando as pessoas passarem indiferentes. Uma ou outra criança animava-se ao avistá-lo, mas todas mantinham-se de mãos dadas com as mães - nenhuma criou coragem para largá-las e aproximar-se um pouco mais. Mas também, com aquele rosto vermelho de ressaca, coberto de rugas, por onde escorriam rios de suor, e o olhar desesperado, apontado para os carros passando na rua e, vez em quando, para o relógio-termômetro da praça, não inspirava lá muita confiança. Além disso, aquele corpo todo, muito magro, tremia todo, incontrolável.

Às três da tarde, parou uma hora para o almoço, ali mesmo, nos fundos da loja, onde recebeu uma quentinha com arroz feijão e mistura. O moço até perguntou se ele queria salada, mas não fazia questão não. Comeu pouco, menos da metade, e largou a quentinha aberta, no canto da escada, onde sabia que viria comer um vira-lata que espreitava. Chamou de volta o moço que cuidava das coisas por ali e pediu um adiantamento, com a desculpa de aproveitar o resto da pausa para resolver um assunto ali na vizinhança. Aquele rapaz bem apessoado, de camisa, calça e sapato - já com a gravata um pouco frouxa, tinha cara de cansado, olheiras fundas e suava bastante. Após procurar um pouco na carteira, tirou dali uma nota amassada e resolveu logo o problema do palhaço.

Com aqueles dez reais no bolso, na frente da loja, ele reparou novamente no relógio-termômetro, fez as contas, com certa dificuldade, e concluiu que dava tempo. Partiu para a esquerda, cruzou a avenida, margeou a praça equilibrando-se sobre o meio-fio - um de seus passatempos prediletos - e foi dar com os cotovelos no balcão verde-claro do boteco do Seu Coisinho, que era o nome que ele dava para todos os anônimos donos de bares. Esse Seu Coisinho, como todos os outros, tinha bigode, mas era mais gordo que a média e usava uma camisa azul sobre uma camiseta branca. Naquele muquifo dois por três, o calor era tanto que o suor já manchava a camisa azul, deixando-a com duas marcas azul marinho sob os braços.

Algumas doses depois, retornou à loja e já era outro sujeito, já não tremia mais a mão. O vermelho do rosto abria espaço para um sorriso desalinhado e, além de segurar a placa, agora ele dançava. Estava tão empolgado, ainda mais vestido de palhaço, que resolveu animar a platéia. Dirigia-se aos pedestres, cantando e contando piada, tropeçava nas próprias pernas e cambaleava, perdia a peruca, ao tentar pegá-la derrubava a placa e acabava, por fim, lutando para pegar as duas e permanecer em pé.

Seria um perfeito Carlitos, não fosse o cheiro de caninha e os gestos bruscos, desmedidos e ameaçadores. As mães, assustadas, atravessavam a rua falando para as crianças não olharem. Os pedestres passavam com presa, tentando evitar que fossem abordados, e quando não conseguiam, chegavam até a empurrá-lo, antes que ele continuasse borrifar saliva para todos os lados enquanto falava, quase gritando.

Os dois seguranças, também cansados, embrulhados em ternos escuros e suando a bicas, não demoraram a perceber a confusão se formando, mas só tomaram uma atitude quando o patrão ordenou ao moço, pelo rádio, que cuidasse daquilo também - e bem rápido. Mesmo sem ser visto pelo vidro escuro, aquele senhor com nó duplo na gravata, ainda engomada, conseguia ver tudo lá de sua sala. Sem outra opção, o moço chamou os seguranças, que pegaram o palhaço pelos braços.

Ao saber que estava dispensado, ele subitamente parou de sorrir, fez as vezes de arrependido, triste, e pediu para que o soltassem. Todavia, logo que afrouxaram-lhe as amarras, zarpou a sapatear, cantarolando novamente.

Enquanto os seguranças andavam atrás dele, as crianças e mães permaneciam estáticas, em um fino equilíbrio, enquanto os primeiros tentavam aproximar-se, elas só queriam distância. Após dar uma volta por toda a loja, com o moço tentando convencê-lo a devolver a fantasia e partir, dizendo até que receberia todo o valor combinado, ele resolveu equilibrar-se novamente no meio-fio e desafiou os seguranças, seus perseguidores, a arriscarem-se na travessia.

As crianças riam da situação e as mães, no fim de tarde, já um tanto cansadas, castigadas pelo sol forte e pelas tarefas diárias, deixavam-nas deslizar pelas mãos suadas para aproveitar o pequeno espetáculo. Os seguranças, no entanto, sentindo-se ridicularizados, após serem avisados pelo rádio que se não dessem conta desse palhaço, podiam ir embora junto com ele, perderam a paciência e, sem ver outra alternativa, tentaram agarrá-lo em um bote rápido.

Foi o balanço da corda bamba, e as mãos suadas deslizaram pela fantasia, sem conseguir segurá-la, e o palhaço cambaleou, girou os braços para trás e, por fim, pousou na pista. O motorista do ônibus, apressado e estressado, por ter que fazer o trabalho dele e do cobrador ao mesmo tempo, embrulhado em seu uniforme, trancado naquela lata com dezenas de pessoas, também suava muito, e, bem na hora, para azar do palhaço, separava um troco do maço.

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