Incapaz de sobreviver apenas com a aposentadoria, ela continuava trabalhando no salão. Contava sempre, a cada cliente que se sentava em sua cadeira, a triste história sobre a doença nos ossos, as fortes dores nos braços, falava que a máquina e a tesoura ficavam cada vez mais pesadas e que ela tinha que ser forte, porque não podia ser mandada embora.
Apesar dos cortes irregulares, desalinhados, por conta das tremedeiras e espasmos, recebia apenas sorrisos complacentes, abraços amigáveis e, vez ou outra, até lograva uma pomposa gorjeta. Ela sorria, acanhada, e escondia-se enquanto pegava o dinheiro e o escondia na bolsa - como se precisasse, uma vez que a dona do salão sempre manteve, propositalmente, por compaixão, a vista afastada daqueles generosos atos.
Antes que os clientes partissem, agradecia bem baixinho, ao pé do ouvido e entregava-lhes um papel dobrado, com seu nome e telefone, pedindo para que ligassem se não a encontrassem por ali, se por acaso retornassem. A maioria dos clientes saia dali com satisfação, por ter colaborado com uma senhora tão necessitada - relevavam o desastre capilar pelo prazer da boa ação. Alguns, inclusive, tornaram-se clientes fiéis. Às vezes, até reduziam o intervalo entre um corte e outro, para evitar que a coitada ficasse sem trabalho.
Um dia, todavia, sentou-se um moço na cadeira, querendo aproveitar o intervalo do almoço para aparar os lados, o “pezinho” e tirar bem pouco de cima. Logo que ela desandou a contar sua história triste, ele começou a sorrir. O sorriso deu lugar à costumeira cara de pena, deixando-a um tanto confusa. Após alguns segundos, tentou insistir na história, mas ele riu abertamente, mais alto, atraindo os olhares de todos os que estavam no salão. Ela, acanhada e ansiosa, não sabia como agir diante daquela situação, sob todos aqueles olhares.
Decidida a não citar mais a história, ao menos enquanto estivesse sob os olhares dos colegas e de outros clientes, ela continuou a aparar a parte de cima, olhando com estranheza, através do espelho, o rosto do rapaz que a desafiava. Os traços lhe pareciam familiares, mas não sabia de onde, de quando, como. Ao cruzarem os olhares, ela desviava. Era enorme o esforço para lembrar-se do rapaz e, também, para controlar a tremedeira e os espasmos. Extremamente nervosa, com medo de que alguém percebesse, pensava em como resolver aquela situação. E foi então, com o temor da descoberta em mente, quando respirou fundo, que ela chegou à conclusão: o rapaz sabia. Ela não sabia como, mas ele sabia, com certeza. Devia tê-la seguido no ônibus, ou morava no mesmo bairro. Ela sempre se cuidava, olhava bem em volta, mas não tinha como se controlar por vinte e quatro horas, sete dias por semana.
A partir daquele momento, ela soube que lidava com o inimigo, o sujeito que poderia revelar os seus segredos, fazer com que ela perdesse aquele emprego e, pior de tudo, podia desmoralizá-la diante de todas aquelas colegas, principalmente a Carla, a manicure, que vivia torcendo pelo tropeço alheio. O inimigo estava ali, parado, e apesar de enxergá-la pelo espelho, estava de costas para ela. No entanto, eles encontravam-se cercados, em uma sala com pouco mais de vinte metros quadrados. Diante do impasse, ela colocou-se a pensar em uma maneira de pôr-se livre daquela ameaça. Olhava em volta, constantemente, esperando brechas nos olhares e analisando as possibilidades.
Alguns minutos depois, entre uma e outra passada de máquina, aproximou, posicionando-o logo atrás da cadeira, o gaveteiro onde guardava seus equipamentos de corte, fotos dos parentes, produtos para o cabelo e catálogos Avon e Natura.
Ela continuou olhando em volta, suando frio, percebendo que, agora, o rapaz estava cada vez mais nervoso, sem saber o que lhe esperava. Reparava, em olhares de soslaio para o espelho, que ele estava confuso, com medo e, provavelmente, angustiado, ao ver-se em posição tão vulnerável.
Ao analisar a situação, ela lembrou-se de um livro que havia lido há alguns meses, auto-ajuda que ela nunca achou que ajudaria mesmo, e resolveu explorar as fraquezas do inimigo, o medo e a posição. Aguardou, calmamente, o desviar de olhares, exatamente quando Robson, o maquiador, chegou à porta da ante-sala, escandaloso como sempre. Os movimentos foram precisos, ao pegar a navalha e exibi-la através de espelho, sabia que o rapaz, já assustado, tentaria levantar-se, faria algum movimento brusco. Foi o álibi perfeito, juntamente com um dos espasmos, friamente controlados.
Exercícios literários e outras peças mal acabadas que não são adequadas para o comércio como produtos culturais.
7 de outubro de 2010
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