Um tanto inseguro
curvava-se, desiludido
diante dos menores desafios
Enraizado em apatia,
quanto mais ele crescia,
mais perto ficava do chão
Exercícios literários e outras peças mal acabadas que não são adequadas para o comércio como produtos culturais.
29 de outubro de 2010
28 de outubro de 2010
Anestesiado
No centro da cidade, paro diante da banca de jornal e, já acostumado, não me surpreendo mais com as capas dos diários sanguinários, entre linchamentos, psicopatas e incendiários. Seguindo meu caminho, cruzo com dois ou três mendigos, flagelados, mutilados e doentes, comendo lixo e desvirando gente, cena também recorrente, que não mais me surpreende.
Ao chegar ao calçadão, deparo-me então com uma rodinha de curiosos, extasiados, cobrindo-me a visão e obrigando-me a abrir espaço. Ao conseguir aproximar-me, deparo-me com um grupo menor, de uns cinco ou seis, todos agachados, a devorar um rapaz, bem moço, devia ter uns vinte e dois. De quando em quando, um ou outro, já saciado, dava o lugar a um dos que esperavam em pé, ali em volta, já com água na boca. Um pouco surpreso, mas sem fazer muito caso, perguntei a um sujeito ao meu lado, que havia acabado de dar a vez:
- O que foi que ele fez?
Após limpar o sangue do canto da boca com as costas da mãos, ele respondeu, calmamente, com toda a lucidez:
- Furando fila...
27 de outubro de 2010
26 de outubro de 2010
Mitomaníaco depressivo
Aquilo que ele tinha era mesmo vocação, um talento nato, pra essa coisa de ser enganado
Na maioria das vezes, nem precisava recorrer ao auxílio dos outros, de boa ou de má vontade, iludindo-se a si próprio
Na maioria das vezes, nem precisava recorrer ao auxílio dos outros, de boa ou de má vontade, iludindo-se a si próprio
25 de outubro de 2010
Ensaio sobre a suspensão
Na outra ponta da vara, após a linha e a bóia, traído por iscas atraentes, o peixe debate-se, luta bravamente. Em seu meio, a água, ele tem força, parece ter duas ou três vezes mais peso, e, invariavelmente, ao pairar suspenso no ar, nos surpreende com seu tamanho, muito menor que o esperado, pela força que exige dos braços.
Nós, por outro lado, ao sermos puxados ou empurrados, tendemos a fincar os pés em terra e resistir, usando de todo o nosso peso para lutar pelo nosso lugar. Nos meios virtuais, no entanto, sem ter onde pôr os pés, pairando sobre águas turvas, deixamo-nos levar, como penas ao vento, e seguimos, fisgados, para onde as correntes nos levarem, sem nem ao menos debater.
Nós, por outro lado, ao sermos puxados ou empurrados, tendemos a fincar os pés em terra e resistir, usando de todo o nosso peso para lutar pelo nosso lugar. Nos meios virtuais, no entanto, sem ter onde pôr os pés, pairando sobre águas turvas, deixamo-nos levar, como penas ao vento, e seguimos, fisgados, para onde as correntes nos levarem, sem nem ao menos debater.
22 de outubro de 2010
Insensitivo
Sentiu uma influência estranha pairando no ar. Pegou rapidamente uma caneta, fechou os olhos e, com as mãos à testa, tentou psicografar uma nova obra
Com as mãos estáticas, abriu um pouco o olho direito, tentando espiar a folha à sua frente. Ao ver o papel em branco, arregalou os olhos e esbravejou em pensamento: malditos espíritos sem talento
Com as mãos estáticas, abriu um pouco o olho direito, tentando espiar a folha à sua frente. Ao ver o papel em branco, arregalou os olhos e esbravejou em pensamento: malditos espíritos sem talento
21 de outubro de 2010
Cócegas
Despido e alucinado
estapeou-se diante de todos
entre risos de agonia
Sob aqueles olhares incrédulos
percorriam seu corpo todo
mil aranhas de pernas finas
estapeou-se diante de todos
entre risos de agonia
Sob aqueles olhares incrédulos
percorriam seu corpo todo
mil aranhas de pernas finas
20 de outubro de 2010
Sacrifício
Já passava de quinze horas seguidas na cozinha, sofrendo com o calor e enxugando o suor da testa com as costas das mãos. Vez ou outra, enfrentando o cansaço e as dores nas costas, curvava a coluna e o pescoço, com as mãos apoiadas nos joelhos.
Na pia, além do liquidificador e da batedeira, acumulava-se uma pilha de panelas, espátulas, colheres de pau e outros acessórios, todas engorduradas, encardidas, avisando-a que não bastava terminar todos os pratos, o trabalho ainda duraria até bem tarde.
Para piorar a situação, a cada sobremesa terminada, sofria para encaixá-la no frágil equilíbrio das prateleiras da geladeira. Já havia derrubado mais de um dos potes de conserva ao tentar encaixar as travessas entre os mantimentos, as sobras das receitas e os refrigerantes. Quanto aos pratos que seguiam para a mesa, o problema era ainda maior, pois o espaço era menor e não podia faltar lugar para as pessoas, para os copos, os pratos de cerâmica, ainda novos, e os aperitivos, que já estavam precisando de reposição por conta dos larápios que rodeavam a sala desde o final da tarde.
Quando finalmente terminou tudo, com exceção da louça, que deu-se ao luxo de deixar para depois da refeição, seguiu direto para o chuveiro. Passou um bom tempo debaixo da água quente, tentando relaxar a cabeça e os músculos cansados, apesar de todo o barulho dos convidados que chegavam.
Após embrulhar-se em roupas e sapatos recém-comprados, maquiar-se e ajeitar bem o cabelo, percorreu triunfante, sorridente, o corredor em direção à sala. A alegria, no entanto, durou pouco. Ao adentrar, reparou que todos já estavam servidos e, alguns, até satisfeitos, já assaltavam a geladeira atrás das guloseimas. Nas travessas, restava pouca coisa, quase nada. Por todos os cantos, acumulavam-se os pratos com restos indesejados. E no tecido claro do sofá, destacavam-se as manchas dos que recusaram-se a buscar os guardanapos na despensa.
O sorriso desfez-se em raiva, angústia. Sentiu-se indignada com a falta de respeito que repetia-se, mais uma vez: comeriam e partiriam. Parada no centro da sala, cercada por aqueles que, naquele momento, mal reconhecia, teve, pela primeira vez em toda a vida, um legítimo desejo de fazer o mal a alguém, sem olhar a quem. Foi quando a nora dirigiu-se a ela, na melhor das intenções:
- Anime-se, querida! É Natal...
Na pia, além do liquidificador e da batedeira, acumulava-se uma pilha de panelas, espátulas, colheres de pau e outros acessórios, todas engorduradas, encardidas, avisando-a que não bastava terminar todos os pratos, o trabalho ainda duraria até bem tarde.
Para piorar a situação, a cada sobremesa terminada, sofria para encaixá-la no frágil equilíbrio das prateleiras da geladeira. Já havia derrubado mais de um dos potes de conserva ao tentar encaixar as travessas entre os mantimentos, as sobras das receitas e os refrigerantes. Quanto aos pratos que seguiam para a mesa, o problema era ainda maior, pois o espaço era menor e não podia faltar lugar para as pessoas, para os copos, os pratos de cerâmica, ainda novos, e os aperitivos, que já estavam precisando de reposição por conta dos larápios que rodeavam a sala desde o final da tarde.
Quando finalmente terminou tudo, com exceção da louça, que deu-se ao luxo de deixar para depois da refeição, seguiu direto para o chuveiro. Passou um bom tempo debaixo da água quente, tentando relaxar a cabeça e os músculos cansados, apesar de todo o barulho dos convidados que chegavam.
Após embrulhar-se em roupas e sapatos recém-comprados, maquiar-se e ajeitar bem o cabelo, percorreu triunfante, sorridente, o corredor em direção à sala. A alegria, no entanto, durou pouco. Ao adentrar, reparou que todos já estavam servidos e, alguns, até satisfeitos, já assaltavam a geladeira atrás das guloseimas. Nas travessas, restava pouca coisa, quase nada. Por todos os cantos, acumulavam-se os pratos com restos indesejados. E no tecido claro do sofá, destacavam-se as manchas dos que recusaram-se a buscar os guardanapos na despensa.
O sorriso desfez-se em raiva, angústia. Sentiu-se indignada com a falta de respeito que repetia-se, mais uma vez: comeriam e partiriam. Parada no centro da sala, cercada por aqueles que, naquele momento, mal reconhecia, teve, pela primeira vez em toda a vida, um legítimo desejo de fazer o mal a alguém, sem olhar a quem. Foi quando a nora dirigiu-se a ela, na melhor das intenções:
- Anime-se, querida! É Natal...
19 de outubro de 2010
Ofuscada
A irmã mais nova, destemida e orgulhosa, ia na frente, sem apoiar-se em nada. A mais velha seguia logo atrás, apoiando-se na bengala, segurando-a pelo braço e direcionando-lhe os passos.
Ainda quando eram crianças, a mais velha prometeu que sempre cuidaria da pequena. Apesar de saber dos riscos, deixava-a, ao menos, seguir e sentir-se à frente. Preferia que fosse assim, não queria tocar no assunto. Sabia muito bem o quanto seria doído, angustiante, para a mais nova assumir as dores nas juntas e, principalmente, a vista anuviada, primeiro estágio da catarata.
Ainda quando eram crianças, a mais velha prometeu que sempre cuidaria da pequena. Apesar de saber dos riscos, deixava-a, ao menos, seguir e sentir-se à frente. Preferia que fosse assim, não queria tocar no assunto. Sabia muito bem o quanto seria doído, angustiante, para a mais nova assumir as dores nas juntas e, principalmente, a vista anuviada, primeiro estágio da catarata.
18 de outubro de 2010
Castigo
Antes de iniciar qualquer frase, tossia por três vezes, uma tosse seca, sofrida, com o punho cerrado diante da boca. Depois de respirar fundo, citava um dos elementos da santíssima trindade e, somente então, fazia alguma referência ao assunto.
Por quatro anos, durante o ensino fundamental, aquela moça com roupas e trejeitos de senhora tentou nos passar algum conhecimento nas aulas de ensino religioso. O problema é que, quando ela terminava o ritual das tosses e bençãos, ninguém mais estava prestando atenção. Durante os quatro anos, ela falava e falava, lia trechos da bíblia, explicava as parábolas e tentava nos encher de esperança no natal, culpa do carnaval até a páscoa e, entre a páscoa e o natal, um misto de compaixão e conformismo.
Até acredito que alguns daquela turma ainda carregam influência dela nos dias atuais, mais de vinte anos depois, principalmente os que foram alvos dos fervorosos - mas, felizmente, pouco frequentes - sermões. Teve um garoto que levou um ovo de chocolate para a escola, na semana anterior à páscoa, coitado. Ela deu-lhe um sermão de ecoar nas outras salas, crucificou-lhe pela gula e pelo descaso com o senhor, que estava prestes a sacrificar-se pelos pecados dele. O garoto tinha sete ou oito anos, não deve mais comer chocolate até hoje.
Por quatro anos, durante o ensino fundamental, aquela moça com roupas e trejeitos de senhora tentou nos passar algum conhecimento nas aulas de ensino religioso. O problema é que, quando ela terminava o ritual das tosses e bençãos, ninguém mais estava prestando atenção. Durante os quatro anos, ela falava e falava, lia trechos da bíblia, explicava as parábolas e tentava nos encher de esperança no natal, culpa do carnaval até a páscoa e, entre a páscoa e o natal, um misto de compaixão e conformismo.
Até acredito que alguns daquela turma ainda carregam influência dela nos dias atuais, mais de vinte anos depois, principalmente os que foram alvos dos fervorosos - mas, felizmente, pouco frequentes - sermões. Teve um garoto que levou um ovo de chocolate para a escola, na semana anterior à páscoa, coitado. Ela deu-lhe um sermão de ecoar nas outras salas, crucificou-lhe pela gula e pelo descaso com o senhor, que estava prestes a sacrificar-se pelos pecados dele. O garoto tinha sete ou oito anos, não deve mais comer chocolate até hoje.
15 de outubro de 2010
Sem saída
Um dia acordou, olhou-se no espelho e percebeu de prontidão que estava mais velho. Ao chegar ao escritório, começou a reparar que as pessoas o olhavam de maneira diferente, tratavam-no com mais cuidado e dirigiam-se a ele em tom mais respeitoso.
Ao entrar no carro, de volta para casa, sentiu-se como um senhor sentado em um carro de frente larga, talvez um Landau ou Opala, com estofamento em imitação de veludo, coberto por um suporte para as costas repleto de bolinhas massageadoras de madeira.
Chegando em casa, viu-se no sofá, de chinelos felpudos, samba-canção e camisa regata, acompanhando os jogos de futebol na televisão enquanto a barriga crescia.
Ainda sem sono, após deitar-se na cama, ajeitando-se para não dar mal jeito na coluna, relembrou os velhos tempos: na juventude, antes de perceber aquela entrada, quando tinha a cabeça cheia de planos, sonhos e fios de cabelo.
Ao entrar no carro, de volta para casa, sentiu-se como um senhor sentado em um carro de frente larga, talvez um Landau ou Opala, com estofamento em imitação de veludo, coberto por um suporte para as costas repleto de bolinhas massageadoras de madeira.
Chegando em casa, viu-se no sofá, de chinelos felpudos, samba-canção e camisa regata, acompanhando os jogos de futebol na televisão enquanto a barriga crescia.
Ainda sem sono, após deitar-se na cama, ajeitando-se para não dar mal jeito na coluna, relembrou os velhos tempos: na juventude, antes de perceber aquela entrada, quando tinha a cabeça cheia de planos, sonhos e fios de cabelo.
14 de outubro de 2010
Abatido
Andava extremamente cansado e já não conseguia mais prestar atenção a nada nem ninguém. Esgotado, resolveu tirar um dia de folga, foi para a praia.
Com o vento afagando-lhe a face, levou pouco mais de cinco minutos para dormir à beira-mar. Ao cair da tarde, apesar de ter armado a cadeira bem longe da água, a maré subiu e algumas ondas bravias vieram lamber-lhe os pés. Acordou assustado, levantou-se de um impulso e correu atrás dos chinelos que iam sendo carregados. Quando finalmente resgatou os dois pares, virou-se para a praia vazia e, só então, lembrou: o garoto tinha vindo junto.
Com o vento afagando-lhe a face, levou pouco mais de cinco minutos para dormir à beira-mar. Ao cair da tarde, apesar de ter armado a cadeira bem longe da água, a maré subiu e algumas ondas bravias vieram lamber-lhe os pés. Acordou assustado, levantou-se de um impulso e correu atrás dos chinelos que iam sendo carregados. Quando finalmente resgatou os dois pares, virou-se para a praia vazia e, só então, lembrou: o garoto tinha vindo junto.
13 de outubro de 2010
Intento
Comovido com a situação, tida como rara nos dias de hoje, recebeu de volta a carteira, colocou-a no bolso e, após agradecer, estendeu a mão ao sujeito que lhe havia devolvido o pertence perdido. Esperando um sorriso agradecido, surpreendeu-se com a reação do sujeito que afastou-se, ao notar uma nota embrulhada entre os dedos, e indagou-lhe:
- O que é isso?
- Uma recompensa... - falou ele, inflado de sua nobre alma.
- Você acha que eu preciso disso?
Sem palavras, naquele exato instante, ele murchou, esvaziado pela ideia de que, com aquela atitude humilhante, contrariava aquele valores que pretendia exaltar.
- O que é isso?
- Uma recompensa... - falou ele, inflado de sua nobre alma.
- Você acha que eu preciso disso?
Sem palavras, naquele exato instante, ele murchou, esvaziado pela ideia de que, com aquela atitude humilhante, contrariava aquele valores que pretendia exaltar.
12 de outubro de 2010
Dedução
As figueiras do passeio atraíram os olhares dos garotos. Os dois pararam, boquiabertos, diante daqueles troncos manchados de líquens e enrugados por dezenas de galhos entrelaçados. Antes que o pai pudesse fazer qualquer comentário, o mais velho, com oito anos, disse ao menorzinho:
- Essas árvores são muito antigas.
O pai, curioso, questionou:
- Como é que você sabe?
- Dá para ver pela cara.
- Essas árvores são muito antigas.
O pai, curioso, questionou:
- Como é que você sabe?
- Dá para ver pela cara.
11 de outubro de 2010
Degradação
Apesar da insistência do médico para que tomasse os remédios todos os dias, ela estava aprendendo a conviver com a dor. Com muito esforço, continuava realizando as tarefas da casa, indo ao mercado, à padaria, à praça e, aos domingos de manhã e quartas de noite, à missa. No entanto, em uma ida à padaria, sentiu uma dor aguda, profunda, nos dois joelhos, e acabou indo ao chão. Envergonhada, caída de bruços, com a saia levantada acima do joelho, as mãos raladas e as roupas cobertas por poeira e por folhas secas, permaneceu ali, naquela posição, até que dois taxistas aproximaram-se para ajudá-la a levantar.
Depois daquele tombo, não queria mais sair de casa, recolheu-se aos seus aposentos, reduzindo as caminhadas aos percursos entre quarto, cozinha, banheiro e sala, sempre se apoiando nas paredes, com medo de cair de novo. Ao fim de uma semana, as dores eram tantas, que ela havia começado a dormir sentada na poltrona da sala, para evitar cruzar todo o corredor até o quarto e, principalmente, a grande dificuldade para levantar-se da cama.
Um dia, a filha, sem notícias dela por semanas, resolveu visitá-la. Ao chegar à porta do prédio, foi alarmada por uma vizinha antiga da mãe, que já não a via mais sair para nada e que, nos últimos dias, também não ouvia muita coisa. Apressou-se a subir as escadas e, ao chegar à porta, sentiu um cheiro forte, horrível, e demorou a abrir a porta por conta da tremedeira. Esperando o pior, adentrou o apartamento e encontrou-a na poltrona, empalidecida, assustadoramente magra. Já tinha feridas nas costas e nas partes dos braços e pernas que ficavam apoiadas na cadeira. Em volta da poltrona, remanesciam alguns pratos de comida, já apodrecida, repleta de fungos de diversas cores. Ao abrir os olhos e perceber que a filha estava ali, estática, ela ameaçou levantar-se, mas desistiu, e então disse:
- Oi, minha filha! Não repare na bagunça.
O choro foi inevitável. A filha não sabia o que dizer, o que fazer. Estava chocada. Ajudou a mãe a caminhar até o banheiro, colocou-a debaixo do chuveiro, limpou-a por inteiro, incluindo as feridas, e depois a ajudou a caminhar até o quarto, para deitá-la na cama. Ligou para o marido, pedindo para que viesse logo, e começou a arrumar a sala, único cômodo que tinha sinais de qualquer atividade recente. Naquela tarde, apesar da resistência da mãe, que dizia estar muito bem, carregaram-na até o hospital - sem precisar usar de força, uma vez que ela não tinha condições de resistir fisicamente.
Nas semanas em que permaneceu internada, ainda com imensa dificuldade para levantar-se e caminhar até o banheiro, ela continuou a recusar os analgésicos e antiinflamatórios, insistia que estava sentindo-se bem. Por mais que tentassem, até mesmo escondendo as pílulas na comida, não conseguiam convencê-la a engolir. Os médicos já cogitavam sedá-la, para então administrar a medicação no soro, e recomendavam à família que, assim que tivesse condições de receber alta, ela fosse levada a uma instituição psiquiátrica para avaliação - afinal, não era normal aquela recusa, insistente, de remédios que poderiam melhorar a qualidade de vida de pacientes no estado dela.
Nas breves conversas com a filha, desviava do assunto quando se tratava dos remédios. Antes de ser sedada, se negava a dar qualquer explicação aos médicos. Além disso, refutava os diagnósticos de piora no quadro da artrose e fazia questão, ainda que ninguém a ouvisse, de falar sobre o clima, os rumos das novelas e outros temas rotineiros, que costumavam dominar seus diálogos antes de ser tomada pelas dores. Ao psiquiatra, nunca revelou seus verdadeiros anseios e medos. Acabou, por fim, internada, sem nunca mencionar a ninguém os motivos de sua recusa, claro indício de depressão, autodegradação.
Após meses presa naquele quarto insípido, sob efeito de fortes sedativos, aliados aos analgésicos e antiinflamatórios, todos misturados ao soro, ela só dispunha-se a falar sobre tarefas domésticas, filmes e romances, enquanto mantinha-se calada sobre a recusa dos medicamentos. Ela sabia que os médicos e parentes insistiriam, mas não iria, de maneira alguma, sujeitar-se a engolir comprimidos diários. Ainda estavam frescas as memórias do falecido: era tão saudável, mas definhou em um instante, assim que se aposentou e incluiu as pílulas para o coração na rotina diária. Em pouco tempo, já engolia cerca de seis comprimidos por refeição, cada qual com seus efeitos e defeitos. O remédio da pressão piorou a circulação, que mexeu com o coração, que causou um problema no estômago, pedra no rim, sobrecarga do fígado e, por fim, naquele equilíbrio tão frágil, de folha de outono em galho seco, um vento frio causou uma gripe, que se converteu em bronquite, pneumonia, e assim ele foi-se. Nunca soube os motivos que levaram todas aquelas pessoas, algumas muito amadas e bem criadas, a convencê-lo a seguir aquele rumo. No entanto, mesmo que não soubesse, esforçava-se para manter a rotina dos velhos tempos, ela não se renderia, não assim, tão fácil.
8 de outubro de 2010
Quimera
Ambas as garras cravaram-se em meus ombros. Olhei para cima, inclinando meu pescoço, e deparei-me com aquele monstro descomunal, prestes a carregar-me para sua caverna, local onde devoraria-me de maneira impiedosa. Minhas suspeitas, meus maiores temores, confirmaram-se quando ele abriu aquela assustadora bocarra:
- Termine logo esse relatório e acompanhe-me até a minha sala, precisamos ter uma conversa séria.
- Termine logo esse relatório e acompanhe-me até a minha sala, precisamos ter uma conversa séria.
7 de outubro de 2010
Tragédia anunciada
Incapaz de sobreviver apenas com a aposentadoria, ela continuava trabalhando no salão. Contava sempre, a cada cliente que se sentava em sua cadeira, a triste história sobre a doença nos ossos, as fortes dores nos braços, falava que a máquina e a tesoura ficavam cada vez mais pesadas e que ela tinha que ser forte, porque não podia ser mandada embora.
Apesar dos cortes irregulares, desalinhados, por conta das tremedeiras e espasmos, recebia apenas sorrisos complacentes, abraços amigáveis e, vez ou outra, até lograva uma pomposa gorjeta. Ela sorria, acanhada, e escondia-se enquanto pegava o dinheiro e o escondia na bolsa - como se precisasse, uma vez que a dona do salão sempre manteve, propositalmente, por compaixão, a vista afastada daqueles generosos atos.
Antes que os clientes partissem, agradecia bem baixinho, ao pé do ouvido e entregava-lhes um papel dobrado, com seu nome e telefone, pedindo para que ligassem se não a encontrassem por ali, se por acaso retornassem. A maioria dos clientes saia dali com satisfação, por ter colaborado com uma senhora tão necessitada - relevavam o desastre capilar pelo prazer da boa ação. Alguns, inclusive, tornaram-se clientes fiéis. Às vezes, até reduziam o intervalo entre um corte e outro, para evitar que a coitada ficasse sem trabalho.
Um dia, todavia, sentou-se um moço na cadeira, querendo aproveitar o intervalo do almoço para aparar os lados, o “pezinho” e tirar bem pouco de cima. Logo que ela desandou a contar sua história triste, ele começou a sorrir. O sorriso deu lugar à costumeira cara de pena, deixando-a um tanto confusa. Após alguns segundos, tentou insistir na história, mas ele riu abertamente, mais alto, atraindo os olhares de todos os que estavam no salão. Ela, acanhada e ansiosa, não sabia como agir diante daquela situação, sob todos aqueles olhares.
Decidida a não citar mais a história, ao menos enquanto estivesse sob os olhares dos colegas e de outros clientes, ela continuou a aparar a parte de cima, olhando com estranheza, através do espelho, o rosto do rapaz que a desafiava. Os traços lhe pareciam familiares, mas não sabia de onde, de quando, como. Ao cruzarem os olhares, ela desviava. Era enorme o esforço para lembrar-se do rapaz e, também, para controlar a tremedeira e os espasmos. Extremamente nervosa, com medo de que alguém percebesse, pensava em como resolver aquela situação. E foi então, com o temor da descoberta em mente, quando respirou fundo, que ela chegou à conclusão: o rapaz sabia. Ela não sabia como, mas ele sabia, com certeza. Devia tê-la seguido no ônibus, ou morava no mesmo bairro. Ela sempre se cuidava, olhava bem em volta, mas não tinha como se controlar por vinte e quatro horas, sete dias por semana.
A partir daquele momento, ela soube que lidava com o inimigo, o sujeito que poderia revelar os seus segredos, fazer com que ela perdesse aquele emprego e, pior de tudo, podia desmoralizá-la diante de todas aquelas colegas, principalmente a Carla, a manicure, que vivia torcendo pelo tropeço alheio. O inimigo estava ali, parado, e apesar de enxergá-la pelo espelho, estava de costas para ela. No entanto, eles encontravam-se cercados, em uma sala com pouco mais de vinte metros quadrados. Diante do impasse, ela colocou-se a pensar em uma maneira de pôr-se livre daquela ameaça. Olhava em volta, constantemente, esperando brechas nos olhares e analisando as possibilidades.
Alguns minutos depois, entre uma e outra passada de máquina, aproximou, posicionando-o logo atrás da cadeira, o gaveteiro onde guardava seus equipamentos de corte, fotos dos parentes, produtos para o cabelo e catálogos Avon e Natura.
Ela continuou olhando em volta, suando frio, percebendo que, agora, o rapaz estava cada vez mais nervoso, sem saber o que lhe esperava. Reparava, em olhares de soslaio para o espelho, que ele estava confuso, com medo e, provavelmente, angustiado, ao ver-se em posição tão vulnerável.
Ao analisar a situação, ela lembrou-se de um livro que havia lido há alguns meses, auto-ajuda que ela nunca achou que ajudaria mesmo, e resolveu explorar as fraquezas do inimigo, o medo e a posição. Aguardou, calmamente, o desviar de olhares, exatamente quando Robson, o maquiador, chegou à porta da ante-sala, escandaloso como sempre. Os movimentos foram precisos, ao pegar a navalha e exibi-la através de espelho, sabia que o rapaz, já assustado, tentaria levantar-se, faria algum movimento brusco. Foi o álibi perfeito, juntamente com um dos espasmos, friamente controlados.
Apesar dos cortes irregulares, desalinhados, por conta das tremedeiras e espasmos, recebia apenas sorrisos complacentes, abraços amigáveis e, vez ou outra, até lograva uma pomposa gorjeta. Ela sorria, acanhada, e escondia-se enquanto pegava o dinheiro e o escondia na bolsa - como se precisasse, uma vez que a dona do salão sempre manteve, propositalmente, por compaixão, a vista afastada daqueles generosos atos.
Antes que os clientes partissem, agradecia bem baixinho, ao pé do ouvido e entregava-lhes um papel dobrado, com seu nome e telefone, pedindo para que ligassem se não a encontrassem por ali, se por acaso retornassem. A maioria dos clientes saia dali com satisfação, por ter colaborado com uma senhora tão necessitada - relevavam o desastre capilar pelo prazer da boa ação. Alguns, inclusive, tornaram-se clientes fiéis. Às vezes, até reduziam o intervalo entre um corte e outro, para evitar que a coitada ficasse sem trabalho.
Um dia, todavia, sentou-se um moço na cadeira, querendo aproveitar o intervalo do almoço para aparar os lados, o “pezinho” e tirar bem pouco de cima. Logo que ela desandou a contar sua história triste, ele começou a sorrir. O sorriso deu lugar à costumeira cara de pena, deixando-a um tanto confusa. Após alguns segundos, tentou insistir na história, mas ele riu abertamente, mais alto, atraindo os olhares de todos os que estavam no salão. Ela, acanhada e ansiosa, não sabia como agir diante daquela situação, sob todos aqueles olhares.
Decidida a não citar mais a história, ao menos enquanto estivesse sob os olhares dos colegas e de outros clientes, ela continuou a aparar a parte de cima, olhando com estranheza, através do espelho, o rosto do rapaz que a desafiava. Os traços lhe pareciam familiares, mas não sabia de onde, de quando, como. Ao cruzarem os olhares, ela desviava. Era enorme o esforço para lembrar-se do rapaz e, também, para controlar a tremedeira e os espasmos. Extremamente nervosa, com medo de que alguém percebesse, pensava em como resolver aquela situação. E foi então, com o temor da descoberta em mente, quando respirou fundo, que ela chegou à conclusão: o rapaz sabia. Ela não sabia como, mas ele sabia, com certeza. Devia tê-la seguido no ônibus, ou morava no mesmo bairro. Ela sempre se cuidava, olhava bem em volta, mas não tinha como se controlar por vinte e quatro horas, sete dias por semana.
A partir daquele momento, ela soube que lidava com o inimigo, o sujeito que poderia revelar os seus segredos, fazer com que ela perdesse aquele emprego e, pior de tudo, podia desmoralizá-la diante de todas aquelas colegas, principalmente a Carla, a manicure, que vivia torcendo pelo tropeço alheio. O inimigo estava ali, parado, e apesar de enxergá-la pelo espelho, estava de costas para ela. No entanto, eles encontravam-se cercados, em uma sala com pouco mais de vinte metros quadrados. Diante do impasse, ela colocou-se a pensar em uma maneira de pôr-se livre daquela ameaça. Olhava em volta, constantemente, esperando brechas nos olhares e analisando as possibilidades.
Alguns minutos depois, entre uma e outra passada de máquina, aproximou, posicionando-o logo atrás da cadeira, o gaveteiro onde guardava seus equipamentos de corte, fotos dos parentes, produtos para o cabelo e catálogos Avon e Natura.
Ela continuou olhando em volta, suando frio, percebendo que, agora, o rapaz estava cada vez mais nervoso, sem saber o que lhe esperava. Reparava, em olhares de soslaio para o espelho, que ele estava confuso, com medo e, provavelmente, angustiado, ao ver-se em posição tão vulnerável.
Ao analisar a situação, ela lembrou-se de um livro que havia lido há alguns meses, auto-ajuda que ela nunca achou que ajudaria mesmo, e resolveu explorar as fraquezas do inimigo, o medo e a posição. Aguardou, calmamente, o desviar de olhares, exatamente quando Robson, o maquiador, chegou à porta da ante-sala, escandaloso como sempre. Os movimentos foram precisos, ao pegar a navalha e exibi-la através de espelho, sabia que o rapaz, já assustado, tentaria levantar-se, faria algum movimento brusco. Foi o álibi perfeito, juntamente com um dos espasmos, friamente controlados.
6 de outubro de 2010
Ciclo insustentável
De maneira nenhuma que eu vou escrever um livro. Para publicá-lo, eu teria de derrubar a única árvore que eu ainda nem plantei. A melhor opção é abandonar o projeto literário e poupar-se do trabalho ambiental, dois coelhos sem nem dar uma cajadada. E quanto ao filho, o terceiro pilar da vida dos ultrapassados, quem é que quer, hoje em dia, colocar uma criança nesse mundo violento, sujo, tão deturpado, não é mesmo?
A vida hoje em dia é muito mais objetiva, moderna e equilibrada. É tudo muito estratégico, analiso riscos e elimino qualquer possibilidade de erro. Não tem mais essa coisa de ficar caminhando sem rumo, deixando marcas e pegadas para todo lado. Permaneço parado, de cócoras, sustentando-me, na margem do suportável.
5 de outubro de 2010
4 de outubro de 2010
Apesar
Naquela época, mamãe não tinha rotina, saia de casa e fazia novas amigas todos os dias. Além disso, eu e ela éramos muito mais unidas, íamos juntas ao shopping e, na volta, ela me contava todas as histórias, falava das novas amizades e de mais um monte de coisas - eu não tinha como prestar muita atenção porque estava dirigindo.
Quando ela ficava em casa, ficava quietinha, no quartinho dela, lá no fundo do corredor, acho que assistia televisão - eu sei que ela deixava ligada, mas, talvez, fosse só para fazer companhia. Eu sempre tinha minhas coisas para resolver, sabe como é, a correria, e ela ficava triste, deprimida, dava até uma agonia.
Pelo menos, naqueles tempos, saíamos quase todo dia e quando eu não podia ir, dava um jeito de deixá-la na porta para depois buscá-la. Era ótimo. E sempre que eu chegava, ela surpreendia-se: primeiro reclamava que eu havia chegado muito cedo e depois assustava-se com a hora: "já?". Às vezes ela até insistia para ficar um pouco mais, mas eu não podia abandonar meus compromissos nem podia deixá-la ali.
Para ser bem sincera, um dia, sem querer, eu acabei deixando ela lá, esqueci completamente. Deu uma peninha quando ela chegou em casa, toda vermelha, suada, coitada. Mas nada foi pior do que ver ela depois das notícias do fechamento. Foi horrível. Presa em casa, ela definhou, aos poucos, isolando-se cada vez mais. Nenhum dos médicos soube dizer exatamente o que ela tinha, mas eu tenho uma certeza: a proibição dos bingos - e o fechamento daquele no shopping - é que matou a mamãe.
Quando ela ficava em casa, ficava quietinha, no quartinho dela, lá no fundo do corredor, acho que assistia televisão - eu sei que ela deixava ligada, mas, talvez, fosse só para fazer companhia. Eu sempre tinha minhas coisas para resolver, sabe como é, a correria, e ela ficava triste, deprimida, dava até uma agonia.
Pelo menos, naqueles tempos, saíamos quase todo dia e quando eu não podia ir, dava um jeito de deixá-la na porta para depois buscá-la. Era ótimo. E sempre que eu chegava, ela surpreendia-se: primeiro reclamava que eu havia chegado muito cedo e depois assustava-se com a hora: "já?". Às vezes ela até insistia para ficar um pouco mais, mas eu não podia abandonar meus compromissos nem podia deixá-la ali.
Para ser bem sincera, um dia, sem querer, eu acabei deixando ela lá, esqueci completamente. Deu uma peninha quando ela chegou em casa, toda vermelha, suada, coitada. Mas nada foi pior do que ver ela depois das notícias do fechamento. Foi horrível. Presa em casa, ela definhou, aos poucos, isolando-se cada vez mais. Nenhum dos médicos soube dizer exatamente o que ela tinha, mas eu tenho uma certeza: a proibição dos bingos - e o fechamento daquele no shopping - é que matou a mamãe.
1 de outubro de 2010
Sabatina
Ao ouvir da televisão que o homem é um animal político por natureza, ajeitou-se na cadeira, deu uma tragada no paiero e puxou conversa com o cunhado:
- Olha, que esses político, arisco e sempre atento, se dão igual animal, isso eu já sabia. Mas que eles fazem alguma coisa pela natureza, isso pra mim é novidade.
- Olha, que esses político, arisco e sempre atento, se dão igual animal, isso eu já sabia. Mas que eles fazem alguma coisa pela natureza, isso pra mim é novidade.
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O triste retrato da cidade enlouquecida a ambulância detida no descaso do tráfego
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Tal qual a nata que era como se julgava ela não se misturava Com ares um tanto blasé apenas flutuava, pomposa sentindo-se a dona do lago
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No centro do auditório, a justiça permanece sentada e vendada, enquanto o apresentador aponta para um político corrupto, depois para um ladr...