Mais uma vez pego-me fazendo aquele repetitivo e irritante barulho enquanto carrego a mala de rodinhas pelo piso antiderrapante de outro aeroporto qualquer. Não consigo identificar a cidade da vez, estes caixotes cercados por tubos de vidro virados para a pista são todos iguais, todos com as mesmas lojas, as mesmas livrarias, com os mesmos campeões de venda da auto-ajuda pessoal e profissional, os mesmos cafés caríssimos com pães de queijo assados em dedais, as mesmas televisões, com os mesmos canais de inutilidades, as mesmas pessoas de ternos e taillers, entretidas com os mesmos aparelhos eletrônicos.
Mesmo sem saber ao certo, creio que eu esteja em São Paulo, por uma questão de probabilidade - a cada viagem, para qualquer lugar do país, acabo passando ao menos duas vezes pela engrenagem central, aquele ponto bem no meio da teia, São Paulo, a capital daquilo que todo mundo leva em conta - afinal, ninguém liga para política se não tiver dinheiro na jogada. Falando em política, pelas figuras que encontro de partida, com o conhecimento que tenho sobre a migração da espécie, julgo ser uma manhã de terça-feira, dia de revoada para a capital que todo mundo renega.
Penso em conferir minha passagem, para confirmar se estou indo ou voltando, mas já não tenho tanto interesse em ir ou voltar, não por esse caminho que eu tomei há mais de uma década, essa coisa de rodar o mundo pela firma, um dia em cada canto, acumulando grana, colesterol e um pouco de culpa - que só aparece por causa da falta de tempo para aproveitar a grana. Se eu reduzisse o número de viagens, quem sabe, talvez se contratassem um assistente, ou seu eu trocasse de emprego mesmo. Toda vez que eu bebo, fico falando sobre largar essa porra toda que me consome e embarcar em outra vida. O problema é que agora eu estou sóbrio.
A Maíra desistiu de me esperar há quase cinco anos, isso contando a partir de quando começamos a dormir em quartos separados. O meu garoto já está com dez anos, as gêmeas completam sete agora em agosto, dia quinze, e eu mal sei o que andam fazendo - com exceção dos breves relatos sobre faixas de judô, apresentações de balé e brigas pelo tempo na internet. Eu nunca levei meu menino para pescar, nunca andei de pedalinho com as gêmeas, coisas simples assim, igual comer algodão-doce, nunca fiz. Sempre tive tempo, mas sempre deixei que o tomassem de mim. Nunca tomei meu tempo de volta e agora estou sendo cobrado por tudo que não fiz.
O resultado do exame foi marcante, não é todo dia que a gente descobre que o coração já dá sinais de cansaço. Eu passei dos trinta ainda há pouco e agora me vem essa. A idade hoje em dia não diz nada, o estresse é que define quanto tempo você dura. O Silas, lá da firma, morreu antes de mim, com trinta e dois, derrame, isquemia, não sei direito o nome que deram, só sei que uma veia do cérebro dele não deu conta, entupiu, emperrou, explodiu, sei lá. Ele morreu na hora, dizem que foi melhor, tem gente que sobrevive a uma coisa dessas e vira quase um vegetal, preso à cama, mudo, paralisado, alimentado por tubos.
Começo a sentir um desconforto no estômago, o café não deve ter caído bem. Ao cruzar a sala de embarque rumo ao banheiro, a dor piora, falta-me o ar. Começo a suar frio e devo estar um tanto pálido, pois todos me olham com um pouco de asco - essas notícias sobre epidemias transformaram todos os doentes nos temidos leprosos medievais. Relembro algumas das poucas palavras do médico sobre os ataques cardíacos: palidez, transpiração e outros sintomas que podem ser confundidos com indigestão. Sinto todas as minhas artérias entupidas, meu coração parado e minhas pernas moles. Fraco, deito-me no chão, já rodeado por curiosos. Um deles grita por um médico e pede que dêem espaço para que eu respire, os outros observam, apreensivos, a execução da minha dívida.
Antes de perder a consciência, ainda reparo em um garoto engravatado, desses advogados recém-formados, fotografando-me no celular enquanto engasgo com meu próprio vômito. De todos os arrependimentos, desponta o maior de todos: meus filhos vão ver isso na internet.
Exercícios literários e outras peças mal acabadas que não são adequadas para o comércio como produtos culturais.
20 de maio de 2010
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O triste retrato da cidade enlouquecida a ambulância detida no descaso do tráfego
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Tal qual a nata que era como se julgava ela não se misturava Com ares um tanto blasé apenas flutuava, pomposa sentindo-se a dona do lago
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No centro do auditório, a justiça permanece sentada e vendada, enquanto o apresentador aponta para um político corrupto, depois para um ladr...
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