Carregou-a como um fardo e, após tê-la expelido, criou-a como um estorvo
Após muitos anos, forçada pelo sobrepeso, mantinha o pescoço curvado, olhares rasteiros
Exercícios literários e outras peças mal acabadas que não são adequadas para o comércio como produtos culturais.
31 de maio de 2010
28 de maio de 2010
Auto-análise
Eu devia fazer terapia. Mas, a cem reais a consulta, restou-me apenas a poesia
Por sorte, muitos outros, igualmente surtados, seguiram os mesmos passos. Nas redes sociais, repletas de recados de auto-ajuda, suprimos nossas carências
Por sorte, muitos outros, igualmente surtados, seguiram os mesmos passos. Nas redes sociais, repletas de recados de auto-ajuda, suprimos nossas carências
27 de maio de 2010
Damas
O salão de festas era bem ao lado do playground, que na época era chamado de parquinho mesmo. Os meninos, estavam todos ansiosos para brincar, mas não podiam, afinal, era dia de festinha americana e todos eram grandes demais para o parquinho. Ao menos era isso que tentavam aparentar, do alto de seus quase 12 anos, ostentando roupas novas e exibindo, orgulhosos, os sapatos da primeira comunhão.
No centro do salão, a mesa repleta de quitutes - preparados pelas mães mais habilidosas e comprados pelas mais apressadas - permanecia intocada, enquanto em cantos opostos, alinhavam-se, meninos e meninas, acanhados e insolúveis.
Naquela disposição, enfileirados frente a frente, formavam um irriquieto tabuleiro, de damas e cavalheiros, todos confabulando, ensaiando os passos a serem dados.
No centro do salão, a mesa repleta de quitutes - preparados pelas mães mais habilidosas e comprados pelas mais apressadas - permanecia intocada, enquanto em cantos opostos, alinhavam-se, meninos e meninas, acanhados e insolúveis.
Naquela disposição, enfileirados frente a frente, formavam um irriquieto tabuleiro, de damas e cavalheiros, todos confabulando, ensaiando os passos a serem dados.
26 de maio de 2010
Patriota
Em época de Copa
as folhas de outono torcem
e se retorcem
caindo em câmera lenta
de um lado verdes
do outro
amarelas
as folhas de outono torcem
e se retorcem
caindo em câmera lenta
de um lado verdes
do outro
amarelas
25 de maio de 2010
Interminável
Dois minutos depois do combinado, retirei o celular do bolso pela terceira vez. Após conferir os segundos que haviam passado, esfreguei o aparelho na camiseta, tentando tiras as marcas que minhas mãos, ansiosas e suadas, deixaram no visor. Após quatro ou cinco trocas de posição naquele banco de madeira, pouco confortável, ela desembarcou do outro lado da rua
Trocamos alguns olhares enquanto esperávamos por uma chance de atravessar a rua - eu já estava quase atirando-me em meio aos carros para enfim encontrá-la. Ao nos aproximarmos, ela surpreendeu-me com um beijo, daqueles mais abrasados e eu sorri, envergonhado. Depois disso, criei coragem e a pedi em namoro, como eu sempre fazia, todos os dias, antes de voltarmos para casa
Trocamos alguns olhares enquanto esperávamos por uma chance de atravessar a rua - eu já estava quase atirando-me em meio aos carros para enfim encontrá-la. Ao nos aproximarmos, ela surpreendeu-me com um beijo, daqueles mais abrasados e eu sorri, envergonhado. Depois disso, criei coragem e a pedi em namoro, como eu sempre fazia, todos os dias, antes de voltarmos para casa
24 de maio de 2010
Aprendiz
Passou quatro anos fazendo novas amizades e tendo todo o tipo de experiências - com exceção às profissionais
Ao terminar a faculdade, de nada servia ao mercado de trabalho, formou-se analfabeto funcional
Ao terminar a faculdade, de nada servia ao mercado de trabalho, formou-se analfabeto funcional
21 de maio de 2010
Desprezo
Aquele sujeito sisudo permanece encarando-me, do outro lado do espelho
Entre rejeições e desenganos, desenvolvi uma gravíssima auto-estigma
Entre rejeições e desenganos, desenvolvi uma gravíssima auto-estigma
20 de maio de 2010
Tormenta
Mais uma vez pego-me fazendo aquele repetitivo e irritante barulho enquanto carrego a mala de rodinhas pelo piso antiderrapante de outro aeroporto qualquer. Não consigo identificar a cidade da vez, estes caixotes cercados por tubos de vidro virados para a pista são todos iguais, todos com as mesmas lojas, as mesmas livrarias, com os mesmos campeões de venda da auto-ajuda pessoal e profissional, os mesmos cafés caríssimos com pães de queijo assados em dedais, as mesmas televisões, com os mesmos canais de inutilidades, as mesmas pessoas de ternos e taillers, entretidas com os mesmos aparelhos eletrônicos.
Mesmo sem saber ao certo, creio que eu esteja em São Paulo, por uma questão de probabilidade - a cada viagem, para qualquer lugar do país, acabo passando ao menos duas vezes pela engrenagem central, aquele ponto bem no meio da teia, São Paulo, a capital daquilo que todo mundo leva em conta - afinal, ninguém liga para política se não tiver dinheiro na jogada. Falando em política, pelas figuras que encontro de partida, com o conhecimento que tenho sobre a migração da espécie, julgo ser uma manhã de terça-feira, dia de revoada para a capital que todo mundo renega.
Penso em conferir minha passagem, para confirmar se estou indo ou voltando, mas já não tenho tanto interesse em ir ou voltar, não por esse caminho que eu tomei há mais de uma década, essa coisa de rodar o mundo pela firma, um dia em cada canto, acumulando grana, colesterol e um pouco de culpa - que só aparece por causa da falta de tempo para aproveitar a grana. Se eu reduzisse o número de viagens, quem sabe, talvez se contratassem um assistente, ou seu eu trocasse de emprego mesmo. Toda vez que eu bebo, fico falando sobre largar essa porra toda que me consome e embarcar em outra vida. O problema é que agora eu estou sóbrio.
A Maíra desistiu de me esperar há quase cinco anos, isso contando a partir de quando começamos a dormir em quartos separados. O meu garoto já está com dez anos, as gêmeas completam sete agora em agosto, dia quinze, e eu mal sei o que andam fazendo - com exceção dos breves relatos sobre faixas de judô, apresentações de balé e brigas pelo tempo na internet. Eu nunca levei meu menino para pescar, nunca andei de pedalinho com as gêmeas, coisas simples assim, igual comer algodão-doce, nunca fiz. Sempre tive tempo, mas sempre deixei que o tomassem de mim. Nunca tomei meu tempo de volta e agora estou sendo cobrado por tudo que não fiz.
O resultado do exame foi marcante, não é todo dia que a gente descobre que o coração já dá sinais de cansaço. Eu passei dos trinta ainda há pouco e agora me vem essa. A idade hoje em dia não diz nada, o estresse é que define quanto tempo você dura. O Silas, lá da firma, morreu antes de mim, com trinta e dois, derrame, isquemia, não sei direito o nome que deram, só sei que uma veia do cérebro dele não deu conta, entupiu, emperrou, explodiu, sei lá. Ele morreu na hora, dizem que foi melhor, tem gente que sobrevive a uma coisa dessas e vira quase um vegetal, preso à cama, mudo, paralisado, alimentado por tubos.
Começo a sentir um desconforto no estômago, o café não deve ter caído bem. Ao cruzar a sala de embarque rumo ao banheiro, a dor piora, falta-me o ar. Começo a suar frio e devo estar um tanto pálido, pois todos me olham com um pouco de asco - essas notícias sobre epidemias transformaram todos os doentes nos temidos leprosos medievais. Relembro algumas das poucas palavras do médico sobre os ataques cardíacos: palidez, transpiração e outros sintomas que podem ser confundidos com indigestão. Sinto todas as minhas artérias entupidas, meu coração parado e minhas pernas moles. Fraco, deito-me no chão, já rodeado por curiosos. Um deles grita por um médico e pede que dêem espaço para que eu respire, os outros observam, apreensivos, a execução da minha dívida.
Antes de perder a consciência, ainda reparo em um garoto engravatado, desses advogados recém-formados, fotografando-me no celular enquanto engasgo com meu próprio vômito. De todos os arrependimentos, desponta o maior de todos: meus filhos vão ver isso na internet.
Mesmo sem saber ao certo, creio que eu esteja em São Paulo, por uma questão de probabilidade - a cada viagem, para qualquer lugar do país, acabo passando ao menos duas vezes pela engrenagem central, aquele ponto bem no meio da teia, São Paulo, a capital daquilo que todo mundo leva em conta - afinal, ninguém liga para política se não tiver dinheiro na jogada. Falando em política, pelas figuras que encontro de partida, com o conhecimento que tenho sobre a migração da espécie, julgo ser uma manhã de terça-feira, dia de revoada para a capital que todo mundo renega.
Penso em conferir minha passagem, para confirmar se estou indo ou voltando, mas já não tenho tanto interesse em ir ou voltar, não por esse caminho que eu tomei há mais de uma década, essa coisa de rodar o mundo pela firma, um dia em cada canto, acumulando grana, colesterol e um pouco de culpa - que só aparece por causa da falta de tempo para aproveitar a grana. Se eu reduzisse o número de viagens, quem sabe, talvez se contratassem um assistente, ou seu eu trocasse de emprego mesmo. Toda vez que eu bebo, fico falando sobre largar essa porra toda que me consome e embarcar em outra vida. O problema é que agora eu estou sóbrio.
A Maíra desistiu de me esperar há quase cinco anos, isso contando a partir de quando começamos a dormir em quartos separados. O meu garoto já está com dez anos, as gêmeas completam sete agora em agosto, dia quinze, e eu mal sei o que andam fazendo - com exceção dos breves relatos sobre faixas de judô, apresentações de balé e brigas pelo tempo na internet. Eu nunca levei meu menino para pescar, nunca andei de pedalinho com as gêmeas, coisas simples assim, igual comer algodão-doce, nunca fiz. Sempre tive tempo, mas sempre deixei que o tomassem de mim. Nunca tomei meu tempo de volta e agora estou sendo cobrado por tudo que não fiz.
O resultado do exame foi marcante, não é todo dia que a gente descobre que o coração já dá sinais de cansaço. Eu passei dos trinta ainda há pouco e agora me vem essa. A idade hoje em dia não diz nada, o estresse é que define quanto tempo você dura. O Silas, lá da firma, morreu antes de mim, com trinta e dois, derrame, isquemia, não sei direito o nome que deram, só sei que uma veia do cérebro dele não deu conta, entupiu, emperrou, explodiu, sei lá. Ele morreu na hora, dizem que foi melhor, tem gente que sobrevive a uma coisa dessas e vira quase um vegetal, preso à cama, mudo, paralisado, alimentado por tubos.
Começo a sentir um desconforto no estômago, o café não deve ter caído bem. Ao cruzar a sala de embarque rumo ao banheiro, a dor piora, falta-me o ar. Começo a suar frio e devo estar um tanto pálido, pois todos me olham com um pouco de asco - essas notícias sobre epidemias transformaram todos os doentes nos temidos leprosos medievais. Relembro algumas das poucas palavras do médico sobre os ataques cardíacos: palidez, transpiração e outros sintomas que podem ser confundidos com indigestão. Sinto todas as minhas artérias entupidas, meu coração parado e minhas pernas moles. Fraco, deito-me no chão, já rodeado por curiosos. Um deles grita por um médico e pede que dêem espaço para que eu respire, os outros observam, apreensivos, a execução da minha dívida.
Antes de perder a consciência, ainda reparo em um garoto engravatado, desses advogados recém-formados, fotografando-me no celular enquanto engasgo com meu próprio vômito. De todos os arrependimentos, desponta o maior de todos: meus filhos vão ver isso na internet.
19 de maio de 2010
18 de maio de 2010
17 de maio de 2010
Tortura
Durante aquela sessão de maus tratos, entre o som estridente de instrumentos pouco afiados e as pancadas incessantes de uma surra desconcertante, ouvia-se, naquela voz rouca e pavorosa, em altíssimo, mas em péssimo tom:
- Não deixe o samba morrer!
- Não deixe o samba morrer!
14 de maio de 2010
Mel de tolo
Todo dia, bem cedo, vestia a camisa amarotada, a calça jeans surrada (mas não dessas que já vem surrada da loja), a botina velha e o chapéu de aba amassada.
Já na rua, vestia a cara de tolo e, por fim, a voz e o sotaque de caipira inocente:
- Vai mel, madame? - dizia ele, oferecendo as garrafas cheias do açúcar melado de milho.
Já na rua, vestia a cara de tolo e, por fim, a voz e o sotaque de caipira inocente:
- Vai mel, madame? - dizia ele, oferecendo as garrafas cheias do açúcar melado de milho.
13 de maio de 2010
Ilusionistas
Diante do fundo neutro
a poesia atua sozinha
Enquanto o leitor
autofascina-se
com os efeitos especiais
a poesia atua sozinha
Enquanto o leitor
autofascina-se
com os efeitos especiais
12 de maio de 2010
Atrofia
Reparava em todos os detalhes do teto. Repentinamente, voltou a atenção para o cronômetro, que marcava pouco mais de dois minutos. Pensou que faltavam mais de dez vezes o tempo interminável que já havia passado - e soltou o ar pelo nariz, angustiado. Continuou, apesar de estar completamente desmotivado - por mais que tentasse, não via muito propósito naquela atividade, ainda mais em ambiente fechado.
Olhou para os lados, tentando distrair-se, mas de nada adiantou. Ao reparar no culto dos espelhistas, foi inevitável a ideia de sair dali o quanto antes e nunca mais voltar. No entanto, naquele momento, xingou-se mentalmente - havia caído novamente na promoção dos três meses adiantados, nunca aprendia.
Olhou para os lados, tentando distrair-se, mas de nada adiantou. Ao reparar no culto dos espelhistas, foi inevitável a ideia de sair dali o quanto antes e nunca mais voltar. No entanto, naquele momento, xingou-se mentalmente - havia caído novamente na promoção dos três meses adiantados, nunca aprendia.
11 de maio de 2010
Observadores
Após passar uns tempos na casa dos filhos, observando o comportamento dos netos, que passavam horas na internet, Dona Adélia retornou a sua terrinha e confidenciou às amigas mais próximas:
- Na minha vida toda, para lá de oitenta anos, nunca vi gente jovem gostar tanto assim de aquário.
- Na minha vida toda, para lá de oitenta anos, nunca vi gente jovem gostar tanto assim de aquário.
10 de maio de 2010
Cafona
Nos velhos poemas de amor
as rimas eram mais simples
e tudo combinava
do jeito que dava
costurando pelo som
conjuntinhos de moletom
as rimas eram mais simples
e tudo combinava
do jeito que dava
costurando pelo som
conjuntinhos de moletom
7 de maio de 2010
Arcaico
Após anos em desuso, aquele velho dicionário deparou-se com a realidade, com as mudanças na linguagem após uma série de acordos e desacordos. Antes de retornar à prateleira empoeirada, indignado, deixou cair ao chão um bilhete manuscrito:
Perdoe-me a incúria, mas devo-lhe a indagação. Porventura vosmecê, quiçá sem saber os porquês,
rubricaste algum acordo que intentava, petulante, desarranjar os princípios das regras ortográficas?
Perdoe-me a incúria, mas devo-lhe a indagação. Porventura vosmecê, quiçá sem saber os porquês,
rubricaste algum acordo que intentava, petulante, desarranjar os princípios das regras ortográficas?
6 de maio de 2010
Correria
De um lado a outro
aguentando porrada
e acumulando pontos
atrás de metas e bônus
bolinha de fliperama
aguentando porrada
e acumulando pontos
atrás de metas e bônus
bolinha de fliperama
5 de maio de 2010
Contida
Engoliu o orgulho a seco, mas arrotou um pouco de sarcasmo - involuntário, não dava para segurar
De imediato, arregalou os olhos, cobriu a boca com a mão direita - um tanto envergonhada - e pediu desculpas, com um leve sorriso entre os dedos
Ao cruzar o corredor, sentiu-se orgulhosa - um dia enfrentaria aquele sujeito repugnante
De imediato, arregalou os olhos, cobriu a boca com a mão direita - um tanto envergonhada - e pediu desculpas, com um leve sorriso entre os dedos
Ao cruzar o corredor, sentiu-se orgulhosa - um dia enfrentaria aquele sujeito repugnante
4 de maio de 2010
3 de maio de 2010
Fantasia
Sonhava em ser uma diva ruiva, desde que descobrira que Rita Hayworth ostentava cabelos avermelhados. Decepcionou-se um pouco quando descobriu que o cabelo dela era pintado, mas não podia reclamar de nada que fosse falso
Quando decidiram arrombar a porta - meia hora depois do recepcionista ter visto um tipo suspeito sair apressado do quarto, tremendo e desajeitado - depararam-se com ele deitado ao chão, despido de seus apetrechos e enchimentos, com duas longas mechas, de um vermelho ainda vivo, escorrendo pelo ralo
Quando decidiram arrombar a porta - meia hora depois do recepcionista ter visto um tipo suspeito sair apressado do quarto, tremendo e desajeitado - depararam-se com ele deitado ao chão, despido de seus apetrechos e enchimentos, com duas longas mechas, de um vermelho ainda vivo, escorrendo pelo ralo
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O triste retrato da cidade enlouquecida a ambulância detida no descaso do tráfego
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Tal qual a nata que era como se julgava ela não se misturava Com ares um tanto blasé apenas flutuava, pomposa sentindo-se a dona do lago
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No centro do auditório, a justiça permanece sentada e vendada, enquanto o apresentador aponta para um político corrupto, depois para um ladr...