4 de julho de 2009

O homem na rua

Eu salvava vidas todos os dias, mas não era de aço e, no tempo livre, gostava de ir ao boteco do chinês. Naquela tarde caminhei até o bar, cumprimentei o chinês, que dizia ser coreano, mas que não se importava com o apelido, e sentei-me em uma das mesas internas. Já havia reparado que as nuvens anunciavam chuva por vir e, por não pretender ir embora muito cedo, achei melhor prevenir-me da inevitável mudança de mesa. Estava na cidade há apenas três semanas, mas se havia uma coisa na qual havia reparado era nas mudanças graduais e anunciadas do clima. Além do clima, prestava muita atenção nas fantásticas histórias do chinês, coreano, sobre suas inventivas façanhas na guerrilha norte-coreana, um dos aperitivos que tornavam o boteco ainda melhor.
Ao final da tarde, como de costume, as ruas rapidamente encheram-se e esvaziaram-se enquanto os escritórios esvaziaram-se e os lares e bares encheram-se. O boteco do chinês, não sendo exceção, ficou sem uma mesa livre. Eram poucas as mesas, três internas e três externas. Na mesa mais próxima da minha havia um casal de jovens, padrão universitário, cerveja ruim na mesa, óculos na cara e all star no pé. Na mesa mais próxima ao balcão estavam dois sujeitos com uniformes de uma fábrica da região. De onde eu estava não conseguia enxergar nenhuma das mesas de fora porque havia muita gente em pé, bem na minha frente, em volta da juke box. Nunca achei que ressuscitariam essas máquinas, mas, agora que ressuscitaram, as pessoas debatem para saber quem vai colocar a próxima música, enquanto não se decidem, resta-me o silêncio.
O silêncio da indecisão durou pouco, seguido por... um... dois... Todos atiraram-se ao chão, desesperados, uns gritaram, outros se jogaram para dentro do bar e eu fiquei estático, tenso, colado à parede... três ... quatro .... cinco. Cinco tiros, seguidos novamente por um breve silêncio, dessa vez, rompido pelos gritos de um homem.
Eu, chocado, permaneci estático. O homem na rua gritava. Os funcionários da fábrica, que gritaram para as pessoas atirarem-se ao chão, acostumados pela rotina, levantavam-se calmamente. O homem na rua praguejava. A garota que estava na mesa de dentro gritava e chorava, desesperada, dando bronca no namorado que atirou-se ao chão sem pensar nela. O homem na rua chorava. O chinês, coreano, saiu de trás do balcão e, enquanto caminhava lentamente até a porta, disse para que todos permanecessem abaixados até que ele soubesse o que estava acontecendo. O homem na rua agonizava. Eu, ainda estático, olhava para o coreano, chinês, esperando uma reação, um sinal, talvez em código, de preferência que fosse um aviso de que o inimigo havia recuado. O homem na rua implorava.
Após espiar brevemente a rua deserta, exceto pelo homem caído, quase em frente ao mercado, o coreano, chinês, virou-se para mim e disse o que eu já sabia, mas ainda não havia assimilado, que havia um ferido. De prontidão, levantei-me. O homem na rua rezava. Hesitei por um momento. Visualizei-me em um campo de batalha, arrastando-me pelo chão até um soldado ferido, aplicando-lhe uma injeção de algum poderoso anestésico, mentindo que foi só um arranhão, recebendo de suas mãos a carta que eu deveria prometer que entregaria à querida Mary Jane, que o esperava no alto do morro. O homem na rua grunhia.
Caminhei até a porta e pude ver aquele corpo que agora pouco se movimentava, exaurindo-se de forças. Quando pensei em correr até ele, o coreano colocou a mão em meu peito e não me deixou prosseguir. Ele reconheceu o homem na rua, que agora apenas gemia, e explicou-me que, por ali, quem ajudava bandido era tratado como tal.
A chuva anunciada começou a cair, lavando o sangue e engasgando as últimas palavras balbuciadas pelo homem na rua.

Um comentário:

Laís Brevilheri disse...

li ontem uma entrevista do Tezza falando que escrever é sempre um ato de crueldade, porque é preciso ser cruel pra chegar onde a situação realmente vive. A sua arte de ser cruel está ficando refinada, Rodrigo, de um jeito bastante impressionante e bonito. Que imagino que seja esse o porém, a crueldade crua é fácil, a literaria precisa de aadurecimento.

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