30 de junho de 2010

Descarregado

Com os pés descalços - dedos entremeados de barro, aprecio um momento simplório

Pequenas gotas de orvalho evaporam-se, bem ali, diante de meus olhos

Levam consigo meus fardos

29 de junho de 2010

Loteria Federal

Saiu de casa cedo, com um caderno velho nas mãos, revisando os últimos detalhes. Na mochila: uma garrafa de água, duas barras de chocolate e duas canetas pretas. Pegou o primeiro ônibus que passou e permaneceu lendo durante todo o trajeto

Ao desembarcar, não precisou procurar muito para saber o seu destino final. Diante de um prédio antigo, próximo da esquina, aglomeravam-se, entre alguns vendedores ambulantes, diversas pessoas, de todas as idades, todos com as mesmas canetas pretas, garrafas de água e chocolates. Mas, não eram apenas os acessórios que eles tinham em comum, afinal, estavam todos ali pelo mesmo propósito, arriscar a sorte na loteria da classe média instruída, prestar a prova para um cargo público

28 de junho de 2010

Dissimulado

Apesar do estilo bicho-grilo, das roupas compradas no brechó e do esforço para parecer autêntico, ele era apenas mais um vegetariano não praticante

Tal qual um bom cristão, defendia com unhas e dentes todos os dogmas que, apesar de não lhe servirem à conduta diária, apaziguavam-lhe a consciência ao final da noite

25 de junho de 2010

24 de junho de 2010

Autonomia

Mal continha-se de orgulho, após trinta e cinco anos dependendo das caronas do marido, via-se finalmente capaz de ir onde quisesse, no horário que quisesse - com uma pequena margem de erro, dos possíveis congestionamentos e atrasos

No caminho de volta, exaltada, transbordava em lições desnecessárias aos passageiros mais frequentes:

- Se quiser descer, tem que puxar essa cordinha roída!

23 de junho de 2010

Hipocondríaco

Era sempre a mesma coisa, depois do sexo ela tinha que tomar banho. Só para depois poder caminhar lentamente até a cama, deitar-se e esparramar o cabelo molhado pelo meu peito

Sentia-se extremamente sensual com aquele cabelo escorrendo. Eu, detestava, só não reclamava para não quebrar o clima. Onde é que já se viu, achar sexy uma gripe certa, talvez até pneumonia

22 de junho de 2010

Inflável

No início ela só fazia a unha, e eu nem me importava, não chegava a me incomodar. Acho que foi por isso que ela sentiu-se à vontade e resolveu experimentar outras coisas.

Eu só comecei a me preocupar mesmo quando ela começou a ajeitar o cabelo. Enquanto fazia chapinha, podia me queimar a qualquer momento, bastava um movimento em falso. Sem contar que aquela barulheira do secador de cabelo abafava todo tipo de som, atrapalhava tudo.

Com o tempo, ela também começou a fazer tricô e palavras cruzadas. Com as dúvidas de sinônimos com tantas letras, eu ainda me virava bem, apesar de perder um pouco a concentração. Mas, com as agulhas, eu sentia-me em pleno combate, enfrentando um exímio esgrimista. A cada virada para o lado ou troca de posição, acabava sendo atingido por um daqueles floretes. Era horrível. Alguns meses de tricô e eu não aguentava mais, disse a ela que escolhesse: ou ela faria seus afazeres em outro horário, ou nunca mais faríamos amor.

21 de junho de 2010

Inacessível

Gabava-se por construir enigmas quase indecifráveis, labirintos dos quais poucos conseguiriam sair ilesos

Esquecera-se de que os leitores tinham sempre a opção de não entrar

18 de junho de 2010

Artificial

Metodicamente, a cada criação, com o dicionário ao lado, fazia questão de colocar as palavras certas e contadas, uma a uma, preenchendo toda e qualquer possível lacuna

O problema é que não percebia o que todos em volta pensavam: quebra-cabeças só são interessantes para aqueles que os montam

15 de junho de 2010

Caixa de música

Nos raros momentos de lucidez, chorava pelos cantos, percebendo-se condenada.

No entanto, quando permanecia presa ao passado, alegrava-se e comovia-se, repetindo e recriando as mesmas histórias. Revolvendo-se em caminhos e devaneios, tornava-se bailarina, refém de sua própria caixinha de memórias.







2012 - Selecionado no Concurso Sul Info de Minicontos - Sul Info Publicações - Porto Alegre - RS
2012 - Selecionado no 3º Concurso de Microcontos de Jundiaí - Secretaria de Cultura - Jundiaí - SP

14 de junho de 2010

10 de junho de 2010

Impopular

Não suportava mais aquela cidade barulhenta e aquela gente suja. Saltitava por entre as poças daquela água nojenta, escorrendo sabe-se lá de onde. Nas costas bem protegidas, o casaco herdado da avó, nos pés, aquele belo sapato sem salto, bem fechado, como mandam os bons costumes, e nas mãos, o livro sagrado, tão consultado quanto a lista telefônica, mas, esta, no entanto, sendo menos popular entre os círculos de amizade - e muito mais pesada, permanecia nos fundos do criado-mudo, enterrada entre as velhas revistas de ponto e cruz.

9 de junho de 2010

8 de junho de 2010

7 de junho de 2010

Desculpe pelo transtorno

Quando o tio Ali - que na verdade era tio do meu pai - faleceu, tive minha primeira experiência com velórios e enterros. Aos quatro anos, explicaram-me que se tratava de uma coisa da natureza, que seguia seu rumo e que um dia chegaria a hora de cada um de nós voltar à terra.

Ao saber daquilo, fiquei apavorado. Afinal, o tio Ali, conforme todos comentavam, tinha ido de forma tranquila - diziam que era melhor assim do que sofrer. Mas nem todo mundo era velhinho como o tio, nem todos deviam se entregar assim, tão fácil. Eu mesmo, daquele momento em diante, fiquei de olhos bem abertos, pronto para a luta, preparado para quando as raízes viessem me buscar de volta.

4 de junho de 2010

Lúdico

Com certa facilidade, como se brincasse, criava personagens e suas histórias. Vivia envolvendo-se em diversas tramas, algumas rotineiras e, outras, um tanto insólitas. Mergulhava em enredos complexos, labirintos desenvolvidos em realidades paralelas

Entre os familiares e os círculos de amizade, todos exaltavam esta particular aptidão, capacidade criativa. No entanto, após visitarem diversos médicos, para que não restassem dúvidas, chegaram ao diagnóstico: esquizofrenia

2 de junho de 2010

Distópolis

Aquela estranha cidade foi fundada no fundo do vale, cercada por serras e entrecortada por matas, rios, bicas e cachoeiras

No entanto, apesar de poderem apreciar as belezas naturais, dignas de cartões postais, os habitantes acabaram privados de um horizonte, qualquer um que fosse. Permaneciam cercados por todos os lados, vivendo de aparências e presos a suas linhas genealógicas, alinhados e mofados, tal qual os retratos na parede

1 de junho de 2010

Confissão

Eu não suportava mais nem ouvir aquela voz, sempre reclamando de meus desvios, definindo meus rumos e ditando meus passos, tentando manter-me na linha - justo eu, que fui criado solto, igual bicho do mato

Após mais um desentendimento, ela deixou-me sem saída e eu, tomado por um surto colérico, atirei-a do carro em movimento. Eu ainda senti quando a roda traseira passou por cima, o barulho foi pavoroso

Depois daquilo não havia esperança alguma de salvá-la, por isso, acelerei. Segui sem rumo, por vielas tortuosas, sem nenhuma máquina para me dizer o que fazer