31 de julho de 2009

Migração

De mãos abanando, tentou voar para um lugar melhor e, após longa jornada, acabou abrigando-se à sombra dos arranha-céus.

Saudoso do sol, não via a hora de poder voltar ao ninho.

30 de julho de 2009

28 de julho de 2009

Consolo

Na sala de espera do consultório, entre plantas de plástico e revistas "Caras", esperando ser chamada pela dermatologista, encontrou algumas velhas amigas e, enfim, sentiu-se um pouco melhor.

Percebeu, com um leve sorriso no rosto, que não havia sido a única vítima do tempo.

27 de julho de 2009

É Barra

Assim como eu, todos os que moram aqui são muito felizes.

Quanto aos que só vêm para trabalhar e depois vão embora. Bom, esses não são problema nosso.

26 de julho de 2009

Prestígio pueril

Sentados no meio-fio, todos os garotos aguardavam o Seu Alberto voltar do centro carregando a promessa debaixo do braço. Se o Marquinhos passasse de ano, ganharia o videogame. Todos os meninos da rua ajudaram nos estudos e, agora, estavam aguardando a hora de poder testar o novo jogo.

Estavam todos esperançosos, exceto Diego, que assistia a cena pela janela de sua casa, ansioso, percebendo que perderia o controle.

25 de julho de 2009

Esplendor

A sala era divida em 4 blocos, que, por sua vez, eram divididos em 4 cubículos. Apenas a sala do chefe, separada da outra, tinha janelas - que de nada adiantavam, uma vez que não se abriam e que eram cobertas por uma película escura.

Os cúbiculos estavam ocupados, com exceção de um. Discutiu com o chefe e pediu demissão, não aguentava mais. Dizem que foi porque um dia teve que sair um pouco mais cedo, para levar o filho ao dentista, e, só então, depois de anos, reparou que o mundo não era cinza como na hora em que saia de casa ou na hora em que voltava. Com um sorriso reluzente, comentou com o filho: "o mundo é amarelo".

24 de julho de 2009

Na média II

Na faculdade, o ambiente acadêmico, conhecida por ter formado grandes líderes e pelo posicionamento de seus membros nas lutas históricas, engajou-se nas questões sociais que estavam em voga.

- Precisamos fazer algo...
- Algo grande!
- Isso! Diferente de tudo que já foi feito.
- Para marcar as pessoas.
- Exatamente.
- Já sei!
- O que?
- Vamos alugar uma chácara e fazer uma rave open bar, com um som irado!
- Não era nisso que eu estava pensando...
- Não?
- Não gosto muito de música eletrônica.
- Mas pode ter vários ambientes... E o importante é ser open bar!
- É, tendo bebida...

23 de julho de 2009

Na média I

Cresceu naquele bairro razoavelmente seguro, mas que, como todos os cantos da cidade, com exceção aos longínquos bairros-prisão de segurança máxima, havia tornado-se violento.

- Acredita que entraram na casa da Dona Adélia?
- Não creio...
- Sim, e ela estava lá na hora...
- Meu Deus! Ela está bem?
- Parece que ainda não se recuperou do susto.
- Alguém chamou a polícia?
- O pessoal ficou com medo de ligar. A própria Dona Adélia disse para não ligar porque o bandido podia voltar, mas depois ela viu que uns cheques e documentos haviam sumido e ligou para fazer um BO.
- E a polícia fez o que ?
- O de sempre. Chegaram quase uma hora depois, fizeram algumas perguntas, poucas anotações e foram embora sem deixar muita esperança de recuperar qualquer coisa.
- É um absurdo o que eles fazem. Alguém reclamou disso? Para o delegado, promotor, sei lá...
- Lógico que não! Imagine, mexer com a polícia... está doido?
- Alguém precisa fazer alguma coisa. Esse governo, não dá para aguentar mais.
- É, seria bom se alguém fizesse logo.

22 de julho de 2009

Matilha

Todas as férias, sem exceção, iam todos para a casa da avó. A família inteira reunia-se em retratos repletos de sorrisos.

Nos intervalos entre uma foto e outra, rosnavam e discutiam.

21 de julho de 2009

O curioso caso da Literatura

E aquela simpática senhora, que contava histórias repletas de detalhes e encantamentos, transformou-se na criança birrenta, que chora, como se sofresse, apenas por um pouco de atenção

20 de julho de 2009

A carniceira da Cinelândia

A salinha era pequena, com paredes amareladas pelo tempo e com cheiro forte de algum produto químico. Pela janela, ainda que escurecida, notava-se a cruz na ponta da catedral, a algumas quadras de distância.

Eu já estava deitado, com uma luz forte sobre o meu rosto, quando ouvi a batida seca daqueles saltos, aproximando-se por trás de mim. Ela chegou mostrando a que veio, sentou-se ao meu lado, aproximou ainda mais a luz do meu rosto e começou a utilizar uma das inúmeras ferramentas que estavam ao alcance dos meus olhos. No primeiro movimento, arrancou-me sangue e, então, dona da situação, começou a questionar-me sobre os motivos que me levaram a estar na cidade, há quanto tempo eu estava ali e quais eram os meus objetivos. Mesmo que eu quisesse, não podia falar, seria pior.

Fechei os olhos, tentando suportar a dor calado, enquanto ela resolveu utilizar todo seu repertório. Sentia-me dilacerado, com cheiro e gosto de sangue, mas permanecia calado e de olhos fechados.

Ela continuou aplicando seus métodos até que, para meu alívio, uma campainha soou. Ela deteve-se, olhou para a assistente e fez um sinal com os olhos para que ela fosse verificar a situação. A assistente saiu, vagarosamente, e dirigiu-se ao corredor. Ela voltou-se novamente para a mesa de instrumentos, mas, após alguns instantes, a assistente voltou e sussurrou algo em seu ouvido. Neste instante, ela deteve-se novamente, olhou-me nos olhos e disse:

- Eu já volto!

Respirei fundo, cuspi sangue e tentei relaxar os músculos - a este ponto, estavam totalmente tensos. A assistente observava-me, parecia sentir um pouco de pena. A chefe voltou, mandou que ela se retirasse da sala e sentou-se novamente ao meu lado.

Quando achei que ela escolheria algum novo equipamento para infligir-me alguma dor, surpreendeu-me com um pedaço de papel e limpou-me o rosto. Após recomendar que eu me cuidasse para não precisar vê-la de novo em breve, liberou-me. Atravessei o corredor ainda atordoado. Ao chegar na recepção, dei de cara com o próximo paciente. Eu queria avisá-lo, mas não consegui, minha boca toda doía.

19 de julho de 2009

Rotação

Entediada, preparava uma nova ida a cada retorno. Nos intervalos, mostrava aos poucos amigos tudo que havia comprado daqueles povos exóticos, bárbaros. Fazia questão de mostrar também os álbums, com as mesmas fotos, mesmas caras e bocas, mudando apenas um pouco, do pouco que se via do fundo.

Dava voltas pelo mundo, girando em torno de si mesma.

18 de julho de 2009

Hamsters

Presos ao propósito de agradar aos outros, correm em círculos, desesperados, sem sair do lugar

Dizem que é para manter a forma

17 de julho de 2009

2019

Em meio ao cenário desolador, sabendo das graves consequências, alguns ainda arriscam-se a escondê-los no porão para evitar que sejam executados.

Enquanto isso, os governantes frisam a importância de entregá-los às autoridades competentes e a mídia relata, entre telejornais e interrupções urgentes, a incessante dispersão, as incontáveis vítimas e as prováveis consequências da gripe canina.

16 de julho de 2009

Teatro

Com a garganta já seca
lembrou-se de fechar a boca

Aproveitando o momento
respirou fundo

mergulhou de volta

14 de julho de 2009

Passageiro

Parada em minha frente, enquanto abaixava o rosto, ela começou a chorar. Em meio a lágrimas e engasgues, sussurou:

- Eu não quero que termine assim...

Eu fiquei estático, em silêncio.

Após um breve silêncio, ficando cada vez mais agitada, começou a passar a mão pelos cabelos, em claro sinal de desespero. Com as lágrimas escorrendo pelas bochechas, saltando pelo queixo e pousando sobre as pernas, precisou reunir forças para falar, com a voz já rouca, entrecortada por soluços:

- Eu ainda te amo!

Ainda que estivesse comovido, permaneci parado e calado. Eu não podia fazer nada.

Tentando apagar aquele sentimento, esfregando o rosto com a mão e, em seguida, com o braço, acabou manchando a blusa branca com a maquiagem, que a esta altura lhe cobria de maneira disforme quase metade do rosto, dando-lhe ares de uma triste figura pintada por Pablo Picasso. Neste momento, emudeceu, como se aceitasse a própria sorte e, por fim, disse com mais calma:

- Então, acho que é adeus...

Quando ela levantou a cabeça, eu desviei o olhar. De canto de olho, percebi que ela apoiou a cabeça em uma das mãos e continuou a chorar. Enquanto eu, apenas mais um passageiro, não podia fazer nada.

13 de julho de 2009

Êxodo

Recém-formados, com curso superior, submetem-se a salários subhumanos.

Logo, incapazes de sustentar-se com o próprio soldo, os revoltosos entoam o grito de liberdade:

- Independência ou norte!

12 de julho de 2009

De cristal

Era, sem dúvida, uma boa pessoa. Tratava todos muito bem, sem nenhuma distinção, cuidava de animais abandonados, doava sangue e trabalhava duro para manter sua humilde casa. Em seu pequeno jardim, cultivava hortelã e manjericão. No modesto armário de louças, colecionava copos de requeijão.

Aquela visita à avó, quando reparou nas belas taças, foi um dos raros momentos em que desejou o mal a alguém.

11 de julho de 2009

Doce vingança

Conspiram, todos juntos, por aquilo que lhes foi negado

Na primeira chance que lhes é dada, agem com rapidez e precisão

Ao serem confrontados, os olhos, dando voltas, enrolam-se, a boca, cheia de culpa, se fecha, e os dedos, ainda repletos de açúcar, refugiam-se nos bolsos

10 de julho de 2009

Sujeito

Tosse, tosse e se retorce. Na sala de espera do hospital, sozinho, chora. Angustiado, levanta-se e sai apressado, buscando tomar um pouco de ar puro.

Para acalmar-se, acende mais um cigarro, torcendo para que seja o último.

9 de julho de 2009

Nação

Naquela região,
sobre os castelos e casebres,
tremula a mesma bandeira

ecoa o mesmo grito de gol

8 de julho de 2009

Tendências

Seguem as tendências do mundo moderno, coisas simples e básicas, mínimas.

No chão, terra batida. Na dispensa, apenas o básico. No começo do mês, o mínimo.

7 de julho de 2009

Circo econômico

Enquanto bancos e outros especuladores chacoalham para cima e para baixo

Trabalhadores e outros malabaristas, sem rede de segurança, tentam equilibrar-se

6 de julho de 2009

Portabilidade

Insatisfeito com os serviços prestados, muito aquém do quanto ele desembolsava todo dia, todo mês e todo ano, solicitou seu passaporte e arrumou as malas.

4 de julho de 2009

O homem na rua

Eu salvava vidas todos os dias, mas não era de aço e, no tempo livre, gostava de ir ao boteco do chinês. Naquela tarde caminhei até o bar, cumprimentei o chinês, que dizia ser coreano, mas que não se importava com o apelido, e sentei-me em uma das mesas internas. Já havia reparado que as nuvens anunciavam chuva por vir e, por não pretender ir embora muito cedo, achei melhor prevenir-me da inevitável mudança de mesa. Estava na cidade há apenas três semanas, mas se havia uma coisa na qual havia reparado era nas mudanças graduais e anunciadas do clima. Além do clima, prestava muita atenção nas fantásticas histórias do chinês, coreano, sobre suas inventivas façanhas na guerrilha norte-coreana, um dos aperitivos que tornavam o boteco ainda melhor.
Ao final da tarde, como de costume, as ruas rapidamente encheram-se e esvaziaram-se enquanto os escritórios esvaziaram-se e os lares e bares encheram-se. O boteco do chinês, não sendo exceção, ficou sem uma mesa livre. Eram poucas as mesas, três internas e três externas. Na mesa mais próxima da minha havia um casal de jovens, padrão universitário, cerveja ruim na mesa, óculos na cara e all star no pé. Na mesa mais próxima ao balcão estavam dois sujeitos com uniformes de uma fábrica da região. De onde eu estava não conseguia enxergar nenhuma das mesas de fora porque havia muita gente em pé, bem na minha frente, em volta da juke box. Nunca achei que ressuscitariam essas máquinas, mas, agora que ressuscitaram, as pessoas debatem para saber quem vai colocar a próxima música, enquanto não se decidem, resta-me o silêncio.
O silêncio da indecisão durou pouco, seguido por... um... dois... Todos atiraram-se ao chão, desesperados, uns gritaram, outros se jogaram para dentro do bar e eu fiquei estático, tenso, colado à parede... três ... quatro .... cinco. Cinco tiros, seguidos novamente por um breve silêncio, dessa vez, rompido pelos gritos de um homem.
Eu, chocado, permaneci estático. O homem na rua gritava. Os funcionários da fábrica, que gritaram para as pessoas atirarem-se ao chão, acostumados pela rotina, levantavam-se calmamente. O homem na rua praguejava. A garota que estava na mesa de dentro gritava e chorava, desesperada, dando bronca no namorado que atirou-se ao chão sem pensar nela. O homem na rua chorava. O chinês, coreano, saiu de trás do balcão e, enquanto caminhava lentamente até a porta, disse para que todos permanecessem abaixados até que ele soubesse o que estava acontecendo. O homem na rua agonizava. Eu, ainda estático, olhava para o coreano, chinês, esperando uma reação, um sinal, talvez em código, de preferência que fosse um aviso de que o inimigo havia recuado. O homem na rua implorava.
Após espiar brevemente a rua deserta, exceto pelo homem caído, quase em frente ao mercado, o coreano, chinês, virou-se para mim e disse o que eu já sabia, mas ainda não havia assimilado, que havia um ferido. De prontidão, levantei-me. O homem na rua rezava. Hesitei por um momento. Visualizei-me em um campo de batalha, arrastando-me pelo chão até um soldado ferido, aplicando-lhe uma injeção de algum poderoso anestésico, mentindo que foi só um arranhão, recebendo de suas mãos a carta que eu deveria prometer que entregaria à querida Mary Jane, que o esperava no alto do morro. O homem na rua grunhia.
Caminhei até a porta e pude ver aquele corpo que agora pouco se movimentava, exaurindo-se de forças. Quando pensei em correr até ele, o coreano colocou a mão em meu peito e não me deixou prosseguir. Ele reconheceu o homem na rua, que agora apenas gemia, e explicou-me que, por ali, quem ajudava bandido era tratado como tal.
A chuva anunciada começou a cair, lavando o sangue e engasgando as últimas palavras balbuciadas pelo homem na rua.

3 de julho de 2009

Desnivelado

No topo da pirâmidade, carregada de títulos e regalias, resplandece a esmagadora minoria

1 de julho de 2009

Desgosto

Aproximou-se daquela precária prateleira de madeira, apoiada na bicicleta, para facilitar a fuga caso o rapa resolvesse dar as caras. Olhou fixamente para os caramelos. Não era muito de comer doce, nem podia se dar muito ao luxo, mas não resistia àqueles rechonchudos caramelos de Petrópolis. Permaneceu por alguns instantes observando os caramelos, ficou com água na boca e, então, ao reparar na desatenção do vendedor, que tentava trocar uma nota de 10 com o pipoqueiro, tentou pegar um com sabor de chocolate, os azuis, seus preferidos.

Por um momento, encantado pelas guloseimas, o garoto esqueceu-se do perigo. Pagou caro por esse deslize, enquanto olhava para o caramelo em sua mão, cada vez mais próximo do seu bolso, dos fundos do teatro municipal e, por fim, de sua boca, o vendedor, calejado da vida na rua, em um movimento do pé atirou o chinelo para cima, agarrou-o, ainda no ar, e completou o movimento desferindo uma sonora chinelada no rosto do pequeno ladrão de caramelos.

Toda a praça ouviu o estalo, os pombos, assustados pelo barulho, voaram para longe enquanto o garoto permaneceu estático. No rosto, exibia uma marca vermelha evidenciando todas as ranhuras da sola do chinelo. Um fino fio vermelho escorreu-lhe pelo canto da boca.

Cuspiu um pouco de sangue enquanto ouvia um sermão sobre aprender a nunca mais fazer aquilo. Após toda a bronca, ouvia apenas um zumbido, consequência da chinelada. Saiu dali o quanto antes, para que não o vissem chorando. Apertando o passo, dizia a si mesmo que não chorava de dor, mas sim de raiva. Ao chegar ao fundo do teatro municipal, seu refúgio, chorava, sangrava e tremia. Sentado no canteiro, esmurrando o chão, prometeu que um dia, quando crescesse, assim que tivesse forças, iria vingar-se daquela ofensa e de todas as outras, mataria ele friamente. E, se a mãe se intrometesse, o que nunca fazia, ela também, a contragosto.