Em meio à multidão, ele olhou para o chão e viu algo brilhante. Com muita dificuldade, abaixou-se e juntou o pequeno objeto do chão. Era um brinco, o tipo de coisa que só se encontra quando não se está procurando.
Deu uma olhada em volta. Não demorou para notar uma garota que olhava para o chão, como se procurasse por algo. Após reparar na garota, espremeu-se entre a multidão, chegou até ela e perguntou:
- Procurando algo?
Ela levantou o rosto e sorriu, ainda que fosse um sorriso um tanto chateado, e respondeu:
- Perdi meu brinco.
Então foi ele que sorriu, abriu a mão esquerda expondo o achado e disse:
- Este aqui?
Ela sorriu. Agora um outro sorriso, inexplicável, imensurável.
Não era o brinco dela. Nem ao menos combinava com a roupa que ela estava usando. Mas os brincos formaram um belo par.
Exercícios literários e outras peças mal acabadas que não são adequadas para o comércio como produtos culturais.
30 de outubro de 2007
Livre interpretação
Não imploro. Não peço. Nem ao menos insinuo
Não declaro. Não escrevo. Nem deixo a entender
Mas uns ainda ousam. Se assanham, corajosos, a explicar o que não tem sentido.
Não dá para entender este mundo, sem sentido, que eu tento explicar aqui do meu mundinho.
Não declaro. Não escrevo. Nem deixo a entender
Mas uns ainda ousam. Se assanham, corajosos, a explicar o que não tem sentido.
Não dá para entender este mundo, sem sentido, que eu tento explicar aqui do meu mundinho.
26 de outubro de 2007
Povo das sombras
O povo das sombras aparece sempre no mesmo horário, junto com as sombras, assim que o sol nasce. Sempre muito cedo... Ainda na madrugada mas, aparentemente, sem nenhuma ajuda de deus.
Preparam seu café antes de você acordar, limpam o escritório antes de você chegar, colocam o ônibus para rodar antes de você se aglomerar ao congestionamento... Ligam os motores e preparam a cidade para você só chegar e sentar na janelinha, exigindo serviço de bordo.
E você nem ao menos os enxerga, faz questão de desviar o olhar.
Preparam seu café antes de você acordar, limpam o escritório antes de você chegar, colocam o ônibus para rodar antes de você se aglomerar ao congestionamento... Ligam os motores e preparam a cidade para você só chegar e sentar na janelinha, exigindo serviço de bordo.
E você nem ao menos os enxerga, faz questão de desviar o olhar.
25 de outubro de 2007
Cinzas
Em uma metrópole qualquer. Debaixo de uma chuva fina, mas tão fina que se tornava quase invisível, caminhavam lado a lado, de mãos dadas, o garotinho e a mãe. A mãe ia andando com pressa, sem dar atenção ao filho, arrastando-o pela mão.
Quando pararam em um cruzamento, esperando o sinaleiro abrir, o garotinho girou o pescoço e reparou no mundo à sua volta: nas centenas de pessoas apressadas, nas plantas, pássaros, prédios e tudo o mais. Após uma breve análise, por sinal muito precisa, ele virou-se para a mãe e perguntou:
- Mamãe, se os passarinhos são coloridos, as plantinhas são coloridas, os prédios são coloridos e até mesmo a comida é colorida... Por que é que as pessoas são todas cinza?
E ele ficou olhando, esperando por uma resposta. Enquanto o rosto da mãe, por vergonha, passou de cinza para rosa.
Quando pararam em um cruzamento, esperando o sinaleiro abrir, o garotinho girou o pescoço e reparou no mundo à sua volta: nas centenas de pessoas apressadas, nas plantas, pássaros, prédios e tudo o mais. Após uma breve análise, por sinal muito precisa, ele virou-se para a mãe e perguntou:
- Mamãe, se os passarinhos são coloridos, as plantinhas são coloridas, os prédios são coloridos e até mesmo a comida é colorida... Por que é que as pessoas são todas cinza?
E ele ficou olhando, esperando por uma resposta. Enquanto o rosto da mãe, por vergonha, passou de cinza para rosa.
19 de outubro de 2007
Revolução dos segredos
No início achávamos impossível, mas com o tempo nos acostumamos com a ideia: não havia mais segredos. Pensávamos na época que o que se produzia em nossas cabeças ficava, e sempre ficaria, restrito a nós. Mas um dia qualquer, não se sabe a data exata, alguns se mostraram um passo à frente: sabiam o que se passava na cabeça ao lado. E todos se indagaram sobre como isso era possível, elaboraram diversas teorias envolvendo psiquiatria, física quântica ou telepatia, mas sempre ficava faltando algo, um elo.
Depois de algum tempo, o fenômeno difundiu-se, algumas pessoas até deixaram de conversar, sabiam que a pessoa ao lado sabia o que estavam pensando, a sintonia era quase visível. E foi o termo sintonia que desencadeou a explicação mais aceita para o que acontecia: eram ondas. Não produzíamos apenas ondas sonoras e calor, mas a cada pensamento, a cada ideia, emitíamos ondas que até então não eram captadas e, em algum momento de evolução, passamos a ter a capacidade de captá-las.
Com a expansão incontrolável desta habilidade, não havia mais segredos, nada mais era só nosso: cada pensamento era compartilhado. No início foi extremamente complicado para as relações humanas, a sinceridade do pensamento contrastava com os esconderijos da fala e do silêncio. Mas foi ainda mais complicado para as relações sociais e políticas. Cada segredo estratégico, cada desvio de verba, tudo acabava escapando em um pensamento. E vários dos governantes foram desmascarados pelo movimento autodenominado In Veritas, que costumava abordar os políticos que ousassem transitar por locais públicos e indagá-los sobre suas ações frente ao governo e à corrupção. Por mais que as bocas se fechassem, a confissão era inevitável. Os mais poderosos chegaram a cogitar um equipamento que bloqueasse a leitura dos pensamentos, investiram bilhões, mas a única conclusão a que se chegou foi a do senso comum: não há barreiras para o pensamento.
Além do fim dos segredos, a liberdade de expressão fez-se efetiva quando ninguém mais precisava, ou até mesmo conseguia, pensar antes de expor uma opinião. O que também causou muito desconforto, pois a exposição de tantos conceitos acarretaria o fim da ditadura do pensamento. Foi então que se deu a última tentativa de conter a proclamada sintonia geral. A intenção era calar os pensamentos subversivos, e tentaram de tudo; Mas, nem mesmo o medo, semeador de silêncios, foi suficiente para conter a revolução dos segredos.
18 de outubro de 2007
Banho de sol
Dá até para sentir-se preso
Quando é preciso passar pelo caos
Para ir a um lugar um pouco mais tranquilo
Quando é preciso passar pelo caos
Para ir a um lugar um pouco mais tranquilo
17 de outubro de 2007
Pó
Passou o dedo pela cabeceira e mostrou para a garotinha deitada na cama ao lado:
- Olha essa sujeira, minha filha, isso aqui está uma vergonha!
- Mas não fui eu que sujei.
- Foi você sim. Está aqui no seu quarto.
- Mas...
- Nada de mas. Ainda hoje você pega um paninho e limpa. Quando eu voltar quero ver isso aqui brilhando.
A garotinha, ainda deitada na cama, refletiu sobre o pó em cima da cabeceira e sua relação de culpa em relação ao pó. E quando a mãe voltou, a cabeceira ainda estava toda empoeirada. Ela então cobrou a filha:
- Por que é que a cabeceira continua toda cheia de pó?
Com um ar de saber só de experiências feito, a garotinha respondeu, até com um certo descaso:
- Não adianta limpar. Vai sujar de novo. É pó de gente.
- Olha essa sujeira, minha filha, isso aqui está uma vergonha!
- Mas não fui eu que sujei.
- Foi você sim. Está aqui no seu quarto.
- Mas...
- Nada de mas. Ainda hoje você pega um paninho e limpa. Quando eu voltar quero ver isso aqui brilhando.
A garotinha, ainda deitada na cama, refletiu sobre o pó em cima da cabeceira e sua relação de culpa em relação ao pó. E quando a mãe voltou, a cabeceira ainda estava toda empoeirada. Ela então cobrou a filha:
- Por que é que a cabeceira continua toda cheia de pó?
Com um ar de saber só de experiências feito, a garotinha respondeu, até com um certo descaso:
- Não adianta limpar. Vai sujar de novo. É pó de gente.
16 de outubro de 2007
Jardim de Inverno
Mãe e filho aguardavam pela consulta na sala de espera. Ela estava entretida com uma revista, lendo sobre a vida daqueles que menos se importam com a vida alheia. Enquanto isso, ele se divertia com a cara grudada no vidro. Desenhando na parte embaçada pelo próprio bafo, criando estórias e aventuras envolvendo a pequena selva que o encarava através do vidro.
Depois de um tempo, entediado, o garoto decidiu que queria explorar os territórios além-vidro, e questionou a mãe:
- Mãe, posso brincar neste quintalzinho?
- Não é um quintalzinho, filho, é um jardim de inverno. E não pode brincar nele, jardim de inverno é só para ver.
O garoto, ainda parado de frente para o vidro, pensou um pouco e respondeu:
- Eu quero ter um desses em casa.
- Não dá, meu filho, só gente com muito dinheiro consegue ter um desses em casa.
O garoto entendeu a lição.
Muitos anos depois, ele parou com o rosto colado no vidro da vitrine de uma das lojas mais caras da cidade. Desta vez, ele é que foi questionado:
- Papai, o que é que você está olhando?
- Jardins de inverno.
E seguiram em frente. Não dava para brincar além do vidro.
Depois de um tempo, entediado, o garoto decidiu que queria explorar os territórios além-vidro, e questionou a mãe:
- Mãe, posso brincar neste quintalzinho?
- Não é um quintalzinho, filho, é um jardim de inverno. E não pode brincar nele, jardim de inverno é só para ver.
O garoto, ainda parado de frente para o vidro, pensou um pouco e respondeu:
- Eu quero ter um desses em casa.
- Não dá, meu filho, só gente com muito dinheiro consegue ter um desses em casa.
O garoto entendeu a lição.
Muitos anos depois, ele parou com o rosto colado no vidro da vitrine de uma das lojas mais caras da cidade. Desta vez, ele é que foi questionado:
- Papai, o que é que você está olhando?
- Jardins de inverno.
E seguiram em frente. Não dava para brincar além do vidro.
2 de outubro de 2007
Sobre os caminhos
Na direção contrária ao fluxo
Não tem carona
Mas tem sempre alguém para andar ao lado
Não tem carona
Mas tem sempre alguém para andar ao lado
Separação
Um dia ele acordou, lavou o rosto e parou na frente do espelho.
As escovas de dente já não estavam mais ali, ao lado da pia, uma virada para a outra.
E foi naquele momento que ele se deu conta.
As escovas de dente já não estavam mais ali, ao lado da pia, uma virada para a outra.
E foi naquele momento que ele se deu conta.
-
O triste retrato da cidade enlouquecida a ambulância detida no descaso do tráfego
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Tal qual a nata que era como se julgava ela não se misturava Com ares um tanto blasé apenas flutuava, pomposa sentindo-se a dona do lago
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No centro do auditório, a justiça permanece sentada e vendada, enquanto o apresentador aponta para um político corrupto, depois para um ladr...