8 de dezembro de 2011

24 de novembro de 2011

Audácia

Pela primeira vez em trinta anos, ela olhou fundo, bem nos olhos do marido:

- Você que falou para o menino não se amiudar?

Ele ficou surpreso com a novidade do enfrentamento, corrigiu a postura e falou com ar superior e desleixado - como se respondesse só porque queria mesmo.

- Falei sim, filho meu não traz desaforo para casa!

Mordendo o lábio inferior e contraindo as quinas dos olhos, ela continuou:

- Não traz mesmo. E nunca mais vai trazer

Ele ainda tentou abraçá-la, mas o bote da mão esquerda o afastou daquele choro que era só dela.






2011 - 1º lugar no Concurso de Contos Machado de Assis - SESC - DF;
Será publicado na coletânea do concurso

21 de novembro de 2011

Os novos donos

Tombaram as árvores
agarradas a seus frutos indefesos

E sufocaram a terra batida
sob fileiras monótonas de azulejos


Por fim, varreram
- da porta pra fora

os cacos da minha infância

5 de novembro de 2011

29 de outubro de 2011

18 de setembro de 2011

17 de setembro de 2011

Monumentais

Naquelas tardes enevoadas
de feitos grandiosos

represando água da chuva
em açudes de pau e pedra

na beira do meio fio

16 de setembro de 2011

Singular

Eu não acredito...
Justo ela, igualzinho ao meu! Não acredito...

O safado me garantiu exclusividade, só eu teria um assim, e agora... essa vagabunda!

Isso é coisa dele sim, tenho certeza! De longe dá para notar... aquele canalha!

Calma o cacete! Os fotógrafos todos lá, em cima dela... Com que cara você quer que eu fique?

Isso não vai ficar barato não... Mas não vai mesmo!

Ah, só o que me faltava: ela está vindo para cá, a descarada...
Ainda vem sorrindo, a cadela, só para se mostrar! Vou dar um tapa na cara dela!

Me segura,  hein? Eu não me responsabilizo...



Oi, querida! Como você está linda...

Ah, deixa eu ver se adivinho... o cabelo, não é?

Hummm... desisto!

Ah, sim... o nariz, é claro... como eu não reparei?

E com quem que você fez?

Ah, ele é ótimo, dizem que é um dos melhores!
Meus parabéns... você ficou... deslumbrante!



Não falei? Não falei?

Amanhã mesmo eu ligo praquele canalha...

Me garantiu que eu seria a única com o nariz da Paris - e cobrou bem caro por isso...

De que adianta agora, se qualquer vagabunda tem igual?

15 de setembro de 2011

Desfocados

Queimou-se a lenha forte

e, agora, daquele fogo
restam apenas fagulhas e brasas

ansiando por folhas secas
e torcendo para que acenda

um novo foco
no fundo daqueles olhos

19 de agosto de 2011

Deficiência

“Deficiência - s. f. - Def.: toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função anatômica, fisiológica, psicológica ou intelectual.”

O carro passou por mim um tanto rápido - não que estivesse correndo, mas seguia em uma velocidade imprudente ao considerar que estávamos dentro do estacionamento de um mercado. Ao avistar uma vaga ali, tão perto da porta, o motorista não hesitou, engatou a ré e começou a manobrar o carro; Sendo a vaga bem ampla, a tarefa nem exigiu muito esforço.
Eu permaneci ali parado, observando - nem sequer atravessei a via. Não era a primeira vez que eu via aquela mesma cena: um sujeito apressado estacionando na vaga reservada para pessoas com deficiência; Mas dessa vez, fiquei tentado a observar todo o desenrolar, só para me certificar se o motorista, sozinho no carro, possuía ou não algum tipo de deficiência.
Enquanto eu seguia em direção à porta do mercado, o sujeito abriu a porta do carro, saiu, olhou por cima do ombro, na direção do guarda do mercado e, só então, fechou a porta e ligou o alarme. Aquele olhar de cumplicidade, seguido por um ar de impunidade, comprovou as minhas suspeitas: era mais um dos irresponsáveis, que provavelmente se diria com pressa ou desligado - quando todos sabem que o diagnóstico é o descaso.
As pessoas que entravam e saiam até chegaram a lançar alguns olhares de reprovação, tanto para ele quanto para o guarda do mercado, mas este, com medo de envolver-se em qualquer confusão e acabar por perder o emprego, fingiu-se de desentendido. Eu fiz o mesmo, olhei para ele e para o guarda, na esperança de que alguém tomasse uma atitude.
Vieram-me à cabeça todas as minhas omissões em situações similares, além de todos os olhares de cumplicidade e esboços de sorriso pela impunidade. Senti-me realmente um cúmplice daquelas atitudes, aceitando-as mudo - cego e surdo; Eu e todos os outros éramos incapazes de protestar.
Foi então que decidi que dessa vez não, eu não ia deixar passar em branco. Antes de abordar o sujeito, cheguei à conclusão de que ele também tinha uma deficiência; Após cutucá-lo pelas costas, avisei:
- Moço, essa vaga não é reservada para quem possuiu apenas deficiência de caráter.
As palmas evitaram uma reação agressiva. Quanto ao constrangimento, que o levou a entrar no carro e partir meio sem rumo, espero que tenha sido a melhor forma de reabilitação.









2011 - 9º Prêmio Paulo Setúbal - Secretaria Municipal de Cultura - Tatuí - SP;

16 de agosto de 2011

Suplício de fim de festa

Para somar-se à ressaca, a última coisa que eu precisava era uma ameaça - e aquele sujeito enfurecido, com cantos de olho enrugados, ainda tinha a boca curvada para baixo; Gente assim, cheia de mágoa, não tem remorso de cumprir vingança.

8 de agosto de 2011

Relento

Na janela embaçada

o coração, riscado a dedo

derreteu aquele gelo







2011 - 20º Concurso Poemas nos Ônibus e nos Trens - Secretaria Municipal de Cultura - Porto Alegre - RS ;
Publicada na coletânea do concurso

23 de julho de 2011

Demissão

Partiu da redação

com uma mão na honra
e outra na dignidade

cobria com pudores
o que poucos ousavam exibir

12 de julho de 2011

Shiatsu

Do aparelho de som

fluíam os ruídos da chuva



Quando um fio de dedos

súbitos e gelados

escorreu-me pelas costas

22 de junho de 2011

Traição

A rotina foi a causa principal - eu saia de casa muito cedo, mal nos víamos. Mas o estopim foi a tentação - ao sair do trabalho, ela sempre estava por ali, exibindo-se

Não demorei muito a ceder - por não resistir aos encantos, à promessa de aventura. Sem olhar para trás, troquei o sol pela lua - o dia pela noite

5 de junho de 2011

A persistência de Artaud

Agarrou-se às convicções
com as forças que lhe restavam

e não havia no mundo
alguém capaz de separá-los


relaxar-lhe os dedos gelados

31 de maio de 2011

27 de abril de 2011

19 de abril de 2011

Birra

De braços cruzados
não dão qualquer espaço


Deixam chorar e gritar
espernear em plena rua


Até que uma hora cansa

e cala-se
após último suspiro

a pirraça da ambulância

13 de abril de 2011

Vertigem

As pessoas vão passando devagar, algumas até chegam a parar

Diante de tragédias e acidentes, sentem-se atraídas. E seguem todas o mesmo protocolo: dissimuladas condolências e tentativas frustradas de disfarçar a curiosidade; Como se entrassem em velório de estranho, apenas para espiar, da beirada do ataúde, o corpo inerte

8 de abril de 2011

12 de fevereiro de 2011

Abafado

Quando vem a brisa

mesmo que se arrastando


as folhinhas comemoram

dando cambalhotas

pelo amplo calçadão







2011 - 1º lugar no Prêmio Cidadão de Poesia - Sindicato dos Empregados no Comércio de Limeira - SP;
Publicada na coletânea do concurso

31 de janeiro de 2011

Chuva

Uma nuvem destrambelhada

cheinha d´água


enroscou-se na antena


dum desses prédios altos

29 de janeiro de 2011

Indistinto

Dialogava
ao mesmo tempo

com tantas referências

que sua obra
no fim das contas

era apenas um burburinho







2011 - I Prêmio AltFest! de Poesia - VII Festa Literária Internacional de Pernambuco - Olinda - PE;
Será publicada na coletânea do concurso

5 de janeiro de 2011

Insistentes

A cidade tenta

acobertar seus crimes


Mas os corpos na calçada

insistem em levantar-se

todas as manhãs

para lutar por mais um dia

4 de janeiro de 2011

Livres

É duro soltá-las assim, sabendo que lá fora elas podem apanhar muito

Mas, uma vez que a separação é inevitável, nós precisamos, além de dar corpo, abastecê-las de sentidos e referências, de possíveis e intangíveis situações, antes de nos despedirmos com um adeus e boa sorte

Não adianta deixá-las trancadas no sótão, presas aos nossos conceitos, a gente tem que criar as poesias para mundo

3 de janeiro de 2011

Afoito

O ônibus partiu da central

devorando o asfalto

apressado


Ao fazer uma curva fechada

engasgou-se


o poste travou


bem no meio da garganta