31 de agosto de 2009

Medíocre mediana

Infelizmente, para o desgosto das linhas de frente, depois de tantos anos, de tantas batalhas pela igualdade, resolveram nivelar por baixo

30 de agosto de 2009

Infectada

Estavam ali as duas vizinhas de porta do condomínio, bebericando um café quente e colocando o papo em dia, cada qual em seu batente, quando a garota entrou correndo pelo corredor, interrompendo a conversa, e, arfando, eufórica, perguntou:

- Mamãe... - respirou fundo e continuou sem mais pausas - A Larissa pode vir aqui brincar comigo de casinha hoje depois que eu voltar do colégio?

Sem conseguir disfarçar a cara de nojo, com olhos meio fechados e bico cerrado, a mãe concordou com a cabeça, enquanto dava licença para ela entrar, e depois disse:

- Tudo bem, filhinha! - Mas complementou, em um tom mais elevado e áspero - Mas nada de ficar fazendo barulho até muito tarde, você sabe que seu pai chega do trabalho muito cansado.

A vizinha, com a curiosidade dos que pouco se ocupam das coisas próprias, questionou-a sobre a reação, ao que ela prontamente respondeu:

- Essa Larissa é nossa ex-vizinha. A menina é branca de dar dó e tem a pele cheia de manchinhas, toda "sarnentinha", parece doente, sabe como é? Dá uma agonia só de ver, ainda mais nesse sol, coitada.

Ainda cruzando a sala, a garota ouviu o que a mãe disse e correu para o quarto. Ela sabia que quando a mãe tentava sussurrar, mesmo que em vão, era porque não devia ouvir. Sabia também que, logo após terminar a frase, a mãe olharia para trás para conferir se havia, por acaso, escutado algo que não devia.

Após o almoço e durante toda tarde, pensou no que a mãe havia dito, mas, ainda que tivesse algum receio, não ousaria desmarcar o compromisso com a melhor amiga. Além disso, se tanto já haviam brincado juntas, não devia ser algo que passasse de uma pessoa para outra.

Ao cair da tarde, quando Larissa chegou, apenas por precaução, trocou o beijinho por um abraço rápido. Pouco depois, quando abriram o baú dos brinquedos, começou a separar as bonecas, que sempre haviam sido das duas. Por fim, quando a "sarnentinha" abraçou a boneca preferida, esboçou um sorriso, na mesma cara de nojo da mãe, e disse:

- Pode ficar com essa...

29 de agosto de 2009

Ordens

Não podia recusar a gentileza oferecida pela nora, mas, ainda que tenha tentado se segurar, não conseguiu deixar de comentar:

- Eu prefiro lavar primeiro os talheres.

- Por que?

- Só acho que é melhor se fizer assim.

A garota, indiferente, continuo lavando os pratos, depois os copos e, por fim, os talheres. Quando buscou o pano de prato para secar e guardar a louça, a sogra, que observava da porta da cozinha, interveio, sorrindo:

- Não precisa, pode deixar no escorredor que depois eu guardo, afinal, você já fez o bastante.

Algum tempo depois, quando o filho e a nora foram embora, desfez o sorriso, foi para a cozinha e colocou toda a louça na pia. Enquanto esfregava novamente os talheres, dizia para si mesma, indignada:

- Essas mulheres de hoje...

28 de agosto de 2009

Privativo

Os amigos, esperando no carro, já haviam cronometrado, eram exatos trinta minutos para que ele pudesse conferir todas as portas e janelas da casa antes de sair.

Nunca soube explicar muito bem desde quando sentia-se compelido a realizar a vistoria toda vez que fosse sair de casa, mas afirmava convicto que se não a realizasse, não ficaria bem. Ele avisava a todos sobre sua condição, inclusive porque certa vez, quando tentaram arrastá-lo de casa para um bar, impedindo-o de verificar todas as fechaduras, trincos e trancas, ele teve um surto paranóico e, desde então, com a revisão de garantia, os quinze minutos tornaram-se trinta.

27 de agosto de 2009

Dissecação

Nunca esqueceu-se daquela cena. A família havia passado o final de semana viajando e ninguém lembrou-se de deixar água suficiente no tanque da Dona, a tartaruguinha de estimação. Quase quinze anos depois, ainda lembrava perfeitamente de quando apoiou-se na beirada do tanque e viu a pobre coitada, sequinha, sendo devorada pelas formigas.

Desde aquele dia, nunca mais deixou de tomar uma ducha e dois copos de água antes de dormir.

26 de agosto de 2009

Cambaleante

Pouco antes do amanhecer, o garoto mimado implorava pela volta e o homem livre comemorava a coleira solta

Enquanto ele, alheio ao pêndulo dos próprios pensamentos, esforçava-se para acertar a fechadura daquela casa tão vazia

25 de agosto de 2009

Singular

Entre almofadas com ombros solidários e travesseiros com braços carinhosos, consolos do mundo moderno, zapeava fotos alheias e lembrava-se de amores não vividos

Antes de dormir, chorava pelas mágoas que nunca pode guardar

23 de agosto de 2009

Antidesportivo

Bem na hora do close, no momento de maior emoção, arrancou a camisa e atirou longe o patrocinador

Foi punido com cartão

22 de agosto de 2009

Broto

Quando ela insistiu, afiando-se nos esforços para convencê-lo ao desencanto, ele disse pausadamente:

- Todas as rosas têm espinhos, mas nem todas as espinheiras têm rosas.

Ela desabrochou.

21 de agosto de 2009

Intuição feminina

A todo momento, cutucando a unha e mordendo-se por dentro, tinha a impressão de que algo errado estava prestes a acontecer.

Após muitos erros, quando ele não aguentou mais a desconfiança e fugiu, ela esvaziou-se de dúvidas e, por fim, encheu a boca de razão para falar que já sabia.

20 de agosto de 2009

Espinho

Seis e meia, sem outra solução em mente, virava um copo da pinga mais amarga.

Tentava, em vão, fazer descer o dia.

19 de agosto de 2009

Corda bamba

Enquantos as gotas escorriam, movia-se freneticamente, desesperada

Seu par acabara de ir ao chão, amarrotado

O pregador não resistiu

18 de agosto de 2009

Em pé

Tirou a bota para dar um pouco de ar ao pé. Uma crosta endurecida de sangue cobria os três dedos menores. No dedão e no outro, o sangue ainda corria, agora solto.

Já havia quase duas semanas que recebera o par de botas em uma igreja e até agora arrependia-se por ter sorrido e falado que cabia direitinho. Na hora, apavorou-se com a idéia de que não lhe sobraria nenhum calçado além das botas e, sem outra opção, teria que voltar a caminhar no asfalto quente - às vezes, tinha a impressão de que o calor derreteria até os pneus dos carros, não fossem estes tão rápidos.

Sem tempo para perder indo ao hospital para ser ignorado, voltou a olhar para o pé, limpou a ferida com o único pedaço da meia que ainda não estava empapado de sangue e arriscou encostá-lo no chão. Ao sentir o calor do asfalto, desolado, puxou o pé de volta para cima, calçou a bota com muito esforço e continuou andando, o dia seria longo.

17 de agosto de 2009

Baleado

Quando chegava em casa cambaleando, sentia-se como um voluntário do atirador de facas

Enquanto a cama girava, ele ficava inerte, incapaz de desviar das acusações

16 de agosto de 2009

Surpresa

Ele nunca abaixava a guarda, mas, por ela, ficava de coração mole (com exceção das noites de bebedeira, de quinta a segunda-feira). Naquela noite de quarta, chegou cedo, como esperado, e deparou-se com ela esperando na sala, de camisola, com uma venda nas mãos.

Vendado, esperou ansioso, perguntando-se o que lhe aguardava. Bateu os pés, coçou a nuca e, após ouvir os passos dela aproximando-se de volta, ficou paralisado, em pé, no meio da sala.

Após tantos anos de submissão, surpreendeu-se, nunca pensou que um dia ela teria coragem de vingar-se.

15 de agosto de 2009

Inigualável

Ao ser questionado sobre sua arte desarmônica, sem critério ou direção, explicava com ar de superioridade:

- Tenho um estilo diferenciado, único.

14 de agosto de 2009

Desnascimento

Do século XVI ao século XIX, a humanidade buscou desenvolver aparelhos e máquinas que lhe poupassem o esforço físico, permitindo assim o aproveitamento da capacidade cerebral.

A partir do século XX, a tendência inverteu-se. A cada semana aparece, nas academias, um aparelho mais exigente e, nos escritórios, uma máquina mais eficiente.

12 de agosto de 2009

Mate

Desde o casamento, acostumou-se a ser tratada como uma rainha, ia para onde quisesse, quando quisesse. Quase todos os desejos lhe eram atendidos, com exceção dos que revelava apenas entre quatro paredes. No entanto, devido às regalias, as dificuldades do marido pouco lhe incomodavam até aquela tarde chuvosa.

Ao arrumar as gavetas, para evitar que os velhos pijamas embolorassem, encontrou as cartas e bilhetes. Descobriu naquele momento que ele só se interessava pelas outras rainhas.

Tomada por ira, desgovernada, deixou-se levar pelo primeiro peão que cruzou pela casa.

11 de agosto de 2009

Onipresente

Ele está presente nos destinos de todos nós, ainda que alguns não lhe dêem a mínima atenção. Enquanto olham para o alto, alguns rezam para que lhes abra os caminhos enquanto outros xingam, culpando-lhe por fechá-los.

Em cada terra chamam-lhe de uma maneira, mas lá na minha, é sinaleiro.

10 de agosto de 2009

Admirador secreto

Pensou em arriscar-se contando
mas ficou em dúvida

se mais vale um não na cara
ou um talvez voando

9 de agosto de 2009

Ambicioso

Ao ser questionado sobre o que queria ser quando crescesse, não tinha dúvidas, já tinha a resposta na ponta da língua, queria ser sorveteiro. Os parentes e vizinhos riam, evocavam a inocência infantil e o desprendimento ao dinheiro.

Indiferente aos comentários e apertões na bochecha, o garoto, que sempre pagava o picolé com uma nota de dez, contemplava o enorme bolo de dinheiros que o sorveteiro tirava do bolso momentos antes de lamber o indicador e separar-lhe o troco. Deleitava-se, não via a hora de poder lamber o indicador e embaralhar sua própria fortuna de trocados.

8 de agosto de 2009

Percepção precoce

Naquela idade - que ele mesmo pronunciava orgulhoso, enquanto exibia três dedos da mão direita, depois virava a mão para si mesmo e, por fim, usando a mão esquerda, corrigia puxando mais um dedo para cima - aprendia tudo observando.

Um dia qualquer, acordou cedo e rumou para a cozinha, ávido por um bom café da manhã. Por lá, não encontrou os pais, entre gravatas e sapatos de salto, notícias e sobressaltos, com o café pronto. Logo, concluiu que havia chegado o final de semana.

Sem desistir do café da manhã, arrastou a cadeira até a frente do armário, subiu na cadeira, abriu a prateleira, alcançou a lata de Nescau, colocou o Nescau na prateleira mais baixa, desceu da cadeira e arrastou-a de volta para baixo da mesa. Depois disso, abriu a geladeira, tirou os potes de sorvete com sobras do jantar, que já o haviam enganado uma vez, colocou-os no chão, retirou o leite, colocou os potes de volta ao lugar. Fazendo um esforço enorme, apoiando as mãos na beirada da mesa, fez um esticou o corpo todo para fechar a geladeira com o pé - igualzinho o pai fazia. Tendo conseguido o leite e o Nescau, faltava apenas uma colher para misturá-los. Sem pensar duas vezes, abriu a gaveta dos talheres e, mesmo sem conseguir enxergá-los, por causa da altura, pegou uma das colheres, que ficavam à esquerda, e fechou a gaveta - dessa vez não conseguiu imitar o pai, que a fechava com o quadril.

Após preparar o leite com Nescau, derrubando apenas um tanto da mistura quando começou a mexer com a colher, foi para a sala e ligou a televisão, estava na hora dos desenhos. Sentou-se ao sofá e esticou novamente o corpo inteiro para alcançar a mesinha com os pés. Tentou parecer relaxado como o pai naquela posição, mas não conseguiu. Em alguns minutos já estava sentado sobre as pernas cruzadas.

Antes dos pais acordarem, já havia tomado banho e, quando eles finalmente acordaram e começaram a se arrumar, ele já estava pronto para sair, com a camiseta nova do Batman. Afinal, era sábado, dia de almoçar fora.

Chegando ao restaurante de sempre, conhecido pelas comidas típicas, o preferido pelos turistas naquela região, o pai solicitou a mesma mesa para três. Ao sentarem-se, o garoto começou a falar enrolado, forçando a garganta, inventando uma sequência de palavras. Os pais, atônitos, olhavam para ele sem entender. Quando o pai perguntou o que ele estava fazendo, respondeu cochichando no ouvido:

- Eu andei reparando. O garçom é mais legal e a comida vem mais rápido para quem não sabe falar direito.

7 de agosto de 2009

6 de agosto de 2009

Dever

- E o pior é que ano que vem já tem tudo de novo.
- É.
- Daqui a pouco já começam a falar no jornal da tal "festa de democracia".
- Festa? Parece até quando o patrão faz festa de aniversário aqui na fábrica, bem na hora do expediente. Ninguém tem nada para comemorar, mas todo mundo é obrigado a participar.
- Também não aguento mais.

5 de agosto de 2009

Brainstorm

As leis são um apanhado de boas idéias

Mas, no final, apenas duas ou três são colocadas em prática

4 de agosto de 2009

3 de agosto de 2009

Arisco

Sozinho, trancado e seguro, contava os dias e o dinheiro

Após tantas ilusões e trapaças, não podia contar com mais ninguém

2 de agosto de 2009