17 de novembro de 2014

Democracia 1.0

Simpaticíssimos sociopatas
são aclamados

por contagiantes aplausos

que se iniciam e se encerram
pela inércia coercitiva

da euforia coletiva

16 de novembro de 2014

8 de novembro de 2014

Tradição

Eis, então
o inabalável ciclo da vida:

crescer
morrer

e, após o sangue secar
esfolar aquele maldito

vingar o ente querido

cujos olhos inertes
- refletem o meu destino


--


Foi então que se apresentou, diante de mim, o inabalável ciclo da vida: nascer, crescer e matar ou morrer.

Após o sangue secar, vou esfolar aquele maldito.

Vingarei meu ente querido; cujos olhos inertes, turvos, refletem o meu destino.

3 de novembro de 2014

O princípio

Um utópico saudodista
de tempos inenarráveis

quando memórias
se desfaziam
feito fagulhas esvoaçantes

cada momento
uma novidade

e a linguagem
- em sua aurora

um jogo de adivinhar


28 de setembro de 2014

Rascunhos

Há sempre espaço

para mais um traço
- de medo

uma sombra
- de dúvida

ou um contorno
- de hesitação


os riscos incertos
de um sujeito rascunho


um homem só fica pronto
- imutável

quando morto

27 de setembro de 2014

10 de setembro de 2014

Remanescente

Segui ao lado da maca, incrédulo. Na chegada ao hospital, ao abrir a porta da ambulância, deparei-me com aqueles olhos angustiados, olhos de mãe, e não soube o que dizer.

Quando desci ainda estava desnorteado. Senti enjoo. Ao entrar no banheiro, deparei-me com aqueles olhos distantes, que não pareciam meus, as mãos trêmulas, sob as quais não tinha qualquer controle. Passei a língua pelos dentes trincados, com uma aspereza alheia à boca, tal qual o gosto de sangue, e tentei vomitar. Não consegui, nada havia para sair.

Nos dias que se seguiram, tentei manter o controle, como se normal fosse, superado estivesse. Os sorrisos, no entanto, tornaram-se reflexos mecânicos, autônomos mecanismos de defesa. As falas já não me pertenciam, resumiam-se a grunhidos, respostas vagas ou reles perguntas retóricas.

Apesar de tudo isso, as ausências mais sentidas foram das ilusões, tomadas de minhas mãos, e das ainda incertas, mas já ceifadas, esperanças; Nada como uma tragédia para deixar um sujeito mais amargo.

4 de setembro de 2014

3 de setembro de 2014

Passageiro

Em cada estrada
rua ou viela

em cada quarto de hotel
albergue ou pousada

em cada praia
museu ou parque

nas caminhadas
- a cada passo

cada vez que me desvio

encontro-o
fitando-me

o amor derradeiro

2 de setembro de 2014

Orgânico

Pouco lhe importava o palco, o som, a vibe. Apenas observava os rostos sorridentes a bloquear-lhe o caminho e o riso afoito daqueles que nele esbarravam sem sequer percebê-lo

Pisou na lata com força antes de colocá-la na sacola; Já não sentia raiva, era outra coisa

1 de setembro de 2014

Casa de repouso

- Já deu dez horas? - Ela perguntou, atravessando-me o olhar

Voltando as atenções ao portão de entrada, completou:
- Minha filha vem me buscar às dez

E aqueles olhos esperançosos, persistentes, devastaram-me

30 de agosto de 2014

Conversor

A ambição desenfreada
ganhou ares de determinação

E aquela inércia preguiçosa
tornou-se ponderação

Enquanto o sujeito desbocado
coroou-se, sem nem corar-se, “de personalidade forte”

Na entrevista para um ofício
converte-se, em virtude, cada vício

26 de julho de 2014

Via expressa

A luta pelo espaço

entre as faixas
nas filas do semáforo


os choques inevitáveis

e os faróis quebrados
para-choques amassados


os surtos instintivos

xingamentos, ameaças
socos ou tiros

e gritos


Tudo aquilo que calamos

a via expressa


24 de julho de 2014

Tentação

E os tolos continuam
a comprar maçãs mordidas

que logo perecem
- amareladas

enquanto outras florescem
- vermelhas e lustradas

em galhos mais altos

28 de maio de 2014

Passado

Na caixa de sapatos
no fundo da gaveta

cartas e bilhetes
uma foto 3 por 4

e embalagens vazias

papel presente
- amarelado


fósseis de um amor antigo



22 de maio de 2014

Lapso

Naquela noite, prepararam a mesa para quatro.

Quando sentaram-se para jantar e perceberam o ato falho, trocaram olhares desconsolados e marejados.

Não fizeram qualquer oração, mal tocaram a comida e dispersaram-se pela casa, entre prantos e silêncios. Cada um tentava, à sua maneira, lidar com a perda.




14 de abril de 2014

Legado

Nossos filhos vão lutar
por nossa herança


Herança maldita
da intolerância
da fome 
da sede 
e das pestes



Dark Future, por Dennis Bautista

12 de abril de 2014

Orgânico

Elemento
que se molda
e adapta-se

tomando formas distintas


que se conecta
e funde-se

forjando vínculos e compostos


que se decompõe
e purifica-se

regressando a sua essência


e que, sem cessar
se reconstrói
- a partir das cinzas

do pó de grafite

ao diamante

6 de abril de 2014

5 de abril de 2014

Microcrônicas #1 - Pombos, peixes e outros espécimes

Vez por outra, recebemos olhares enviesados apenas por demonstrar simpatia por determinado autor, músico, banda, cineasta, grupo de teatro, entre outros; ora porque ninguém mais aguenta os seguidores, ora porque ninguém mais aguenta os seguidos. Neste momento desconfortável, já somos rotulados, com aquele ar superior e debochado, de "fã-de-tal-coisa", "o-que-quer-que-seja-zete". E, se negarmos a pecha, apontam que a negação e qualquer discussão posterior confirmam, precisamente, que estavam certos.

Não há quem conteste que há fãs maníaco-eufóricos-pé-no-saco, daqueles que defendem os ídolos como se irmãos - e tem até gente que sai por aí pregando humildade e diversos feitos e milagres, sem sequer ter trocado duas palavras com estas supostas entidades. Mas, não se pode generalizar: a simpatia em torno de uma obra não pressupõe, automaticamente, a submissão incontestável e incondicional à adoração por aqueles que a criaram. Afinal de contas, não é por gostar de pipoca que sou como os pombos, que engolem qualquer migalha ou caroço com que se depararam Ou como os peixes, desesperados, que mal diferenciam pedaço de pão e cuspe.

Fica, então, o aviso aos que tem sempre em mãos um punhado de alfinetes e etiquetas, prontos para alfinetar e categorizar seres humanos em suas restritas coleções de espécimes: a vida é feita de escolhas, mas a personalidade vai muito além disso, e sua variedade de facetas não se enquadra em qualquer esquema de organização, por mais metódico que seja.

30 de março de 2014

28 de março de 2014

Esvoaçantes

Dispenso as honrarias
de homem honesto e trabalhador

Dispenso as pompas
de empenhado idealista 

Dispenso os discursos sérios
- e as lembranças em traços fortes


Que evoquem apenas
memórias difusas

de tempos esvoaçantes


E que me escrevam na lápide:

"Correu entre varais estendidos"

14 de março de 2014

Insustentável

Para obter o papel do livro
derrubou a árvore, aquela

E quando, enfim, veio o filho

já não restava muito mundo




8 de março de 2014

Lusco-fusco

No alvorecer dos sonhos
ante o crepúsculo da consciência

na insólita fusão
do céu sob sol e lua


eis é que despontam

desentocadas
- ainda ariscas
as mais fascinantes ideias

que, infelizmente
se perdem

num farfalhar de lençóis

25 de fevereiro de 2014

4 de fevereiro de 2014

Devaneios

Eu ainda era muito pequeno, mas já sabia que eles circulavam por aí, ao nosso redor, ainda que invisíveis.

A princípio, contentava-me em tentar alcançá-los nos raros momentos em que se revelavam, mas, com o tempo, descobri uma maneira de deixá-los expostos: bastava cobrir-lhes de água.

E foi então que comecei, fizesse chuva ou sol, a partir em audaciosas expedições, munido de uma mochila com ferramentas (tesoura, cola e grampeador), kit de primeiros socorros (band-aid e merthiolate), um borrifador, um pequeno carretel de barbante e imensas expectativas. Bem equipado, eu seguia para a beirada do lago e preparava engenhosas armadilhas e traquitanas, cada vez mais enroladas e confusas.

Nunca consegui capturar nenhum, nem chegava perto disso; Mas sempre voltei para casa repleto de histórias para contar, radiante, e com os passos firmes e a postura altiva de um grande caçador de arco-íris.

30 de janeiro de 2014

Domínio da arte

Atado pelas mãos e pescoço, move-se contido, mas com precisão, e sorri.

Mal sabe ele que é apenas marionete, à mercê do violino.






29 de janeiro de 2014

Quimeras

De tempos em tempos, encontro-me diante destas criaturas míticas: quimeras íntimas.

Metade desconhecidas; A outra, amores antigos.











17 de janeiro de 2014

Miragens

Não adianta tentar iludir-me

Já conheço esta cidade 

repleta de homens
atirados aos cantos 

- falando sozinhos


com as mãos
cheias de esperança


e as pernas

cobertas de feridas





11 de janeiro de 2014

Indescritível

Quando abri a porta, ela ainda estava secando as pernas: com o pé direito sobre o assento da privada, esfregava-o com uma ponta da toalha enquanto a outra ponta repousava leve e casualmente sobre a coxa.
O que mais me chamava atenção, no entanto, era o vapor inebriante que se condensava pelas paredes, pelo espelho, e que me tomava de assalto durante os intervalos infindáveis entre uma inspiração e outra. E eu queria guardá-lo, registrá-lo de alguma forma, mas não era capaz de descrevê-lo, de destilá-lo em minhas memórias. Aquele era o aroma do desejo, e eu não admitiria perdê-lo.