31 de março de 2010

Crescendo

Quando o mundo escondeu o pote de biscoitos em cima do armário, após algum tempo, com muito esforço, peguei um banquinho e arrastei até a frente dele. Infelizmente, ainda assim não o alcancei.

Depois de mais algum tempo, e muito empenho, voltei. Peguei uma cadeira e arrastei até o lado do banquinho, mas ainda não dava pé.

Por fim, depois de tanto tempo, esforcei-me ainda mais para arrastar a mesa. No entanto, quando parei novamente ao lado do armário, já estava grande o suficiente para não precisar mais de apoio.

30 de março de 2010

Ceifado

Deixou-a esperando, plantada

Quando chegou, ansioso, alguém já havia colhido os frutos

29 de março de 2010

Ervas daninhas

Nestas terras férteis, em se plantando tudo dá

No entanto, sem qualquer esforço, em cantos úmidos e abandonados, brota apenas a mediocridade

26 de março de 2010

Inconveniente

No sossego do sul de Minas, o povo todo é boa gente, muito do dedicado e ainda mais do hospitaleiro. Quando passa um conhecido, desconhecido ou viajante, já vão logo chamando para um café, guiando para dentro de casa e puxando conversa.

No entanto, de tempos em tempos, esse povo hospitaleiro sofre a sina de quem convida a entrar sem olhar a quem. O povo todo vê o rio, que corre bem ali do lado, e ninguém se cansa de sempre convidar para entrar e o rio sempre fazer desfeita. Mas, de vez em quando, o rio que geralmente corre tranquilo, fica espivetado e resolve aceitar, de uma vez só, todos os convites, vai entrando de casa em casa e chega mais ou menos até a praça, fazendo a maior sujeirada.

A gente de lá, que não é de se irritar por coisa assim à toa, depois que a água se vai por vontade própria, começa a juntar os trapos, as tralhas e os cacos. Durante a limpeza, comentam entre si, bem cochichado, que é para o rio não ouvir, que a sorte é que enchente é igual parente de longe, que só vem mesmo uma vezinha por ano e olhe lá.

25 de março de 2010

Novelo

Puxei o fio da meada

assim, como quem não quer nada


Não me custa tentar desatar

ver se rende conversa fiada







2010 - 19º Concurso Poemas nos Ônibus e nos Trens - Porto Alegre - RS;
Publicada na coletânea do concurso

24 de março de 2010

Evitando desperdício

Não despejo as mágoas em lágrimas, lamentando-me pelos cantos. De nada adianta chorar sozinha. Guardo-as todas, ao lado das boas lembranças, em um pote de vingança

23 de março de 2010

22 de março de 2010

Vou-me embora pra outra casa

Vou-me embora dessa casa

onde o rei nem põe os pés

lá terei minha rainha

na casa que escolherei


Vou-me embora dessa casa

onde o bispo coleta dízimo

se Deus é assim avarento

lá servirei ao diabo


Vou-me embora dessa casa

onde o cavalo caga na porta

aqui eu sou só peão

lá serei o que quiser







livremente criado com elementos da poesia de Manuel Bandeira

18 de março de 2010

Desfeita

Sem pressa nem má vontade, distribuo amostras grátis da mais fina gentileza. Mas ainda tem gente avarenta, desgraçada e lazarenta, que não retribui e desdenha, só porque me faltam, de acidente ou de desleixo, uns 3 ou 4 dos dentes da frente. Bem diria minha avó, que tombou da maleita, Deus a tenha: "sorriso dado não se olha os dentes".







ma.lei.ta: 1. o mesmo que malária

17 de março de 2010

Entre ternos e bravatas

Entre paletós aquecendo poltronas e cafezinhos para colocar o papo em dia, o aviso na parede deixa bem clara a ameaça: quem protestar pelo descaso será preso por desacato.







bra.va.ta: 1. ato ou dito que reflete presunção a respeito de atributos pessoais, poderes etc; 2. ato ou dito insolente que envolve ameaça, intimidação; 3. prova de força ou de coragem desnecessária e eventualmente danosa.

16 de março de 2010

Paralisia

Pela inércia de muitos anos

enfraquecidos e atrofiados

poucos repararam

quando, por fim, cessaram

os movimentos sociais

15 de março de 2010

Valores

Já haviam reunido toda a papelada e discutido com os advogados sobre as despesas do divórcio

No entanto, nos últimos momentos, por tudo que haviam construído juntos, decidiram voltar atrás

Tudo pela manutenção, intacta, do sagrado patrimônio

12 de março de 2010

Chagas

Guardo na memória

momentos marcantes

cicatrizes que exibo orgulhoso


Mas os traumas e tormentas

que eu quero deixar para trás

ainda sangram

11 de março de 2010

Legado

Não escapou da sina da família, que parecia ser coisa genética

Tornou-se também um trabalhador de mão cheia - de calos - e bolso vazio

10 de março de 2010

Amparo

Na desforra, até ouso blasfemar

Mas no desespero, rezo fervorosamente

Quando estou para baixo, ter um santo ajuda

9 de março de 2010

Cárcere privado

Sobre a calçada
fumegam os resquícios
de um colchão incendiado

Em volta,
dezenas de curiosos
observam as contorções
das chamas que ainda resistem.

Ao avistar de longe esta cena,
encho-me de esperança:

finalmente rebelaram-se
os prisioneiros da rotina.







2010 - II Prêmio de Poesias do Núcleo Artístico Cultural Professor Áureo Ramos - RJ

8 de março de 2010

Inglórias póstumas

Depois de muito tempo
tiveram o castigo merecido

Em plena praça pública
cobertos de cocô de pombo

5 de março de 2010

Imaculada

A noite foi perfeita. Ele escolheu um prato delicioso, um vinho ótimo e, para completar, escolheu palavras encantadoras. O ambiente era muito agradável e a companhia melhor ainda, não demorou muito para que eu me deixasse levar. Entre beijos e abraços, já adentrando a madrugada, ele disse que não queria apressar as coisas, que pretendia me respeitar, e levou-me para casa. Não se insinuou a subir comigo, não deu nenhuma indireta maliciosa. Eu fiquei sem palavras.

O insensível não sabe quanto custa fazer pé e mão, escova japonesa, perna toda e virilha cavada. Desgraçado, filho da puta! Só pode ser viado...

3 de março de 2010

Combustível

Não sei em que ano estamos - ninguém mais sabe. Perdemos a conta após as grandes tempestades de areia. Ninguém esperava. Após os terremotos, não podíamos mais nos alojar nas edificações, por medo dos tremores e, então, veio a areia, cobrindo os rastros dos poucos que resistiram. Mas, eu não posso perder tempo, não sabemos quando nem como o planeta vai tentar livrar-se de nós novamente e, portanto, eu e os outros precisamos estar sempre preparados para o pior.

Há muitos anos organizamos nossa comunidade em pequenos grupos, liderados pelo membro mais velho, cada um com um objetivo específico para a manutenção do todo. Acreditávamos que deviam estar fazendo isso por locais de todo o mundo até que fosse possível nos reerguermos como civilização. Ao menos tínhamos essa esperança, mas há muito tempo não tínhamos contato com ninguém de nenhum outro país, estado, cidade ou comunidade.

No meu grupo, éramos quatro, responsáveis pela busca e exploração de combustível. Com trajes específicos, para nos proteger das tempestades de areia e da radiação solar, saíamos da base, rumando em direções distintas a cada dia, sempre evitando as nuvens de poeira, e vasculhávamos o deserto com um detector de gases combustíveis. A cada dois ou três anos encontrávamos uma grande jazida e, em cada uma delas, inúmeros filões, pequenas jazidas, sempre protegidas por uma camada de concreto.

Demos sorte na última missão, cerca de seis horas após a partida da base, na direção sudeste, detectamos um sinal. Após iniciar as escavações e estabelecer acampamento, aguardamos melhores condições de luz para continuar com os trabalhos. No dia seguinte, apesar de cobertos por uma nuvem de poeira, encontramos a primeira placa de concreto, indicando que estávamos no local certo. Pouco tempo depois, já havíamos delimitado uma área com cerca de vinte pequenas jazidas. Decidimos iniciar a extração enquanto um de nós continuava o trabalho de limpeza do terreno para delimitação da área a ser explorada. Extraíamos primeiro o gás, usado principalmente no sistema de calefação - crucial para resistirmos às noites frias. Após retirar o gás, obtínhamos um líquido negro e viscoso, utilizado tanto para movimentar nossas máquinas quanto para o aquecimento da água, funcionamento de veículos de transporte e para a produção de energia elétrica - ainda que os veículos e a energia elétrica fossem utilizados apenas em casos emergenciais.

Não tivemos qualquer problema para perfurar e extrair o combustível dos dois primeiros filões, mas, no terceiro, a broca começou a sacudir e tivemos que interromper os trabalhos. Desliguei a escavadeira, retirei-a para o lado e um dos rapazes abaixou-se, em meio à poeira, para averiguar o que nos estava impedindo. Neste intervalo, o responsável pela limpeza do terreno avisou-me pelo rádio sobre um achado e eu, aproveitando a breve pausa, resolvi procurá-lo. Ao chegar ao local, encontrei-o entre uma estátua de bronze, de um anjo, e quase uma dezena de cruzes de metal, todos cobertos por uma fina nuvem de poeira.

Devido à presença das cruzes, deduzimos que o propósito do local era religioso, mas ainda não sabíamos do que se tratava. Não até o momento em que fui chamado pelo rádio, às pressas, para o local onde havíamos interrompido a extração. No chão, o rapaz ainda retirava um pouco de areia de cima de uma placa de metal. Ao aproximar-me, pude ler a seguinte inscrição: "Aqui jaz, Alberto Galeano, esposo apaixonado, dedicado pai de família e ilustre membro do clube de campo. Que descanse em paz!".

De início, ficamos chocados, estáticos. Não sabíamos que aquilo que nos movia adiante, o que queimávamos para nos aquecer, eram os restos mortais de nossos antepassados. Diante do desespero, antevendo uma crise, assumi meu papel de liderança e disse aos que me cercavam - e a mim mesmo, em voz alta, o que haveria de se tornar meu lema de vida - ou do resto daquilo que eu chamava de vida:

- Eu não posso perder tempo com o tempo que já passou, com os vestígios do que fomos.

2 de março de 2010

1 de março de 2010

Identidade

Ao entrar na sala do apartamento, não notou qualquer diferença. Os mesmos móveis acomodados em volta da televisão, os mesmos pais trabalhadores e ausentes - também acomodados em volta da televisão, com as mesmas dores na coluna e na cabeça.

Na cozinha, os mesmos copos de requeijão, os mesmos panos de prato velhos em cima da pia - enquanto os novos e bordados mofavam na gaveta - e os mesmos potinhos na geladeira, guardando os restos daquilo que ninguém vai comer.

Quando entrou no quarto, ao abrir a janela, percebeu a primeira e única diferença: dali se tinha vista para a praça dos fundos - e não para a rua da frente. Cansado, acomodou-se e dormiu na mesma velha cama de madeira, coberto pela mesma manta empoeirada e quadriculada, ao lado da mesma escrivaninha, que equilibrava-se não se sabe como, suportando o peso daquele mesmo computador amarelado e da televisão de quatorze polegadas.

Na semana seguinte, ao encontrar-se no elevador com o antigo dono do quarto, comentou:

- Gostou da vista da rua?

- Mais movimentada... É bom, para variar.

- Quando cansar, trocamos de volta.

- Fechado!